Assassinato no Expresso do Oriente e as duas facetas de um crime
- 19 de abril de 2023
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- Theillyson Lima
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Agora você é um dos passageiros e a viagem tem dois destinos: a literatura e a dramaturgia.
Ana Júlia Alem
Nascida em Torquay, na Inglaterra de 1890, Agatha Christie produziu oitenta romances e contos ao longo de seis décadas, traduzidos para mais de cem idiomas e com inúmeras adaptações televisivas. Conhecida como Rainha do Crime, teve quatro bilhões de exemplares distribuídos pelo mundo. Além disso, é a escritora com maior número de vendas, ficando atrás apenas da Bíblia e Shakespeare.
Dentre os muitos sucessos da autora, a obra abordada neste texto será “O Assassinato no Expresso do Oriente”, publicada em janeiro de 1934. Assim como em outros livros da autora, o protagonista é Hercule Poirot, um detetive particular famoso por desvendar inúmeros casos criminais populares e complicados. Por conta de uma tempestade de neve, o trem em que o protagonista está viajando, conhecido como Expresso do Oriente, é impedido de viajar. É nesse ponto da história que ocorre um crime que coloca Poirot para resolver mais um mistério.
Lançada dois anos antes da morte da autora, em 1974, a primeira adaptação desta obra foi dirigida por Sidney Lumet e obteve seis indicações ao Oscar. Já em 2017, uma nova adaptação chegou às telonas. O filme foi dirigido e protagonizado por Kenneth Branagh e seu sucesso fez com que a bilheteria conquistasse 352,8 milhões de dólares.
Cena x ambientação
Logo no começo do filme, conseguimos perceber a primeira mudança: a primeira cena se passa no extremo calor do Muro das Lamentações, na Jerusalém de 1934. Poirot encontra-se em seu quarto de hotel, se preparando para solucionar um caso religioso. Em contrapartida, no livro, vemos o detetive, que está em busca de alguns dias de férias, às cinco da manhã indo para seu quarto de hotel no inverno rigoroso da Síria.
Na obra original, o detetive está a caminho da Inglaterra. Para chegar lá, pega um trem que o leva até Istambul para, finalmente, embarcar no Expresso do Oriente. No filme, ele tem os mesmos objetivos, porém, após solucionar o caso – que não existe no livro -, ele parte para Istambul de navio.
Menos um suspeito do assassinato?
Até este momento, haviam poucas mudanças na adaptação. Porém, quando começam as apresentações dos personagens, fica nítido que mudanças bruscas ocorreram na trama. Em sua obra original, Agatha apresenta os personagens de uma forma muito fluida e agradável para o leitor, durante o café da manhã. Ou seja, os personagens se encontravam no mesmo local e foram apresentados ao mesmo tempo.
A mesma cena também acontece na adaptação cinematográfica, mas desta vez, ela não tem a função de apresentá-los, já que cada um dos personagens mais importantes foi apresentado de maneira singular antes. O roteirista do filme opta por fazer um “au passant”, ou seja, ele apenas mostra cada um deles de forma simples. Porém, ao assistir ao filme, notei que eram apenas doze personagens presentes, diferentemente do livro, que apresentava treze personagens.
Estranho, não é mesmo? Com certeza! Bom, já vamos voltar nesse tópico, mas por enquanto vamos falar de Mary Debenham, a personagem que, no livro, é apresentada de relance e não formalmente, como se ela não fosse essencial para a história. Em contrapartida, no filme, sua primeira aparição é em um diálogo com um médico no navio.
Diálogo este, que também acontece na obra original. Porém, ela não acontece com o médico, e sim com o Coronel Arbuthnot. Aí está a primeira mudança drástica: a adaptação simplesmente ignora a existência do Coronel, um dos personagens que possuem muita relevância para a trama. O personagem é trocado pelo médico, que mais tarde, possui um passado militar revelado. Mas o que realmente chama a atenção é que, tanto o Coronel – do livro – quanto o médico – do filme -, possuem as mesmas características físicas.
Recapitulando, na cena de apresentação dos personagens só aparecem doze pessoas, porque dois deles se misturaram na adaptação. Ou seja, Arbuthnot e o Dr. Constantine se tornaram apenas um: o médico com passado militar. Ao ver o filme, fiquei me perguntando sobre o sentido em mesclar dois personagens que são tão relevantes para a história.
Para ser sincera, eu não sou muito fã de adaptações que alteram bruscamente detalhes importantes da obra original. Porém, desta vez, o meu senso crítico deixou passar e vou lhes explicar o por quê. Minha teoria é que essa mudança se deu pelas cenas finais e o que essa cena precisava transmitir.
Como estavam retratados os outros suspeitos?
Houveram outras mudanças de características dos personagens, o Monsieur Bouc, por exemplo, no livro é retratado como um idoso. Já no filme, é um rapaz jovem e sagaz responsável pelo Expresso do Oriente. É claro que a mudança de idade não altera os acontecimentos, mas por que não deixar o senhor, já que não faria diferença alguma?
Com Caroline Hubbard, uma das passageiras do trem, também houve mudanças desnecessárias. No livro, ela é uma daquelas senhoras neuróticas, pessimistas e inconvenientes, mas no filme, é uma personagem extraordinária, daquelas que você vê e pensa: MARAVILHOSA. Ela é segura de si, cheia de charme e completamente diferente do original.
Além disso, a atriz Michelle Pfeiffer, por si só, é uma mulher que possui muita presença, fazendo com que a personagem tomasse vida de uma forma muito especial. Apesar de ter sido uma mudança sem necessidade, a forma como ela foi retratada foi marcante.
O conde e a condessa Andrenyi também tiveram seus personagens alterados. O conde, que no livro é bastante hostil, se transforma em um homem extremamente violento. Já sua esposa, saiu de uma mulher submissa para uma personagem sedutora e livre. Além desses, o assistente de Ratchett, chamado de Mcqueen, foi de um personagem jovem e alto para um homem mais velho, baixo e forte.
As mudanças encontradas na nova produção, a meu ver, foram em sua maioria, desnecessárias. Em contrapartida, também acredito que os atores escolhidos atuaram lindamente, fazendo com que o telespectador se prendesse na trama e deixasse de lado as mudanças feitas no roteiro.
Será que a adaptação para as telonas foi a verdadeira assassina da trama?
Para mim, algo que funcionou perfeitamente foi a adaptação do detetive Poirot. Ele, que é protagonista em outras obras da autora, possui uma personalidade metódica e é cheio de manias, algo que fica escrachado no filme. Ele passa de um personagem sério para um mais descontraído. Além disso, seu humor ácido fica completamente visível na adaptação, o que na minha opinião, só melhorou o personagem.
Na obra original, o trem é forçado a parar por conta da nevasca, mas se isso tivesse acontecido no filme, seria muito parado. Então, o trem sair dos trilhos em meio à tanta neve fez com que a cena tivesse um tom mais dramático e trouxe às telas mais dinamismo. Outro ponto que tornou o filme mais interessante, foram os cenários dentro e fora do trem que não existiam no livro.
Mas, o que mais me agradou foi a revelação do tão procurado assassino do Expresso do Oriente. Assistimos o filme por duas horas e no momento de descobrir se nossos palpites estavam certos, recebemos a carga dramática esperada – tanto drama que me fez chorar. O filme foi repleto de simples alterações que não eram tão importantes, mas que tornaram a produção mais emocionante. Além disso, o ápice da trama foi explorado de uma forma muito intensa, o que fez com que as adaptações fizessem sentido ao fim do filme.
Para mim, não, a adaptação para as telonas não foi a verdadeira assassina da trama! Mesmo com as alterações, sinto que o filme cumpriu o seu propósito e fez isso de uma forma que captou a mim – e os amigos que assistiram ao filme comigo – do início ao fim. Minha dica é: veja o livro e leia o filme. Mais que isso, crie suas próprias teorias e embarque nesse mistério.