Anne of the green Gables VS Anne with an E
- 19 de abril de 2023
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- Theillyson Lima
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O claro exemplo de uma boa adaptação sem ser uma adaptação.
Cristina Levano
As mudanças não são minha coisa preferida, então posso dizer que eu sou do time “fiel ao original“. Porém, antes de assistir um filme ou série baseado em fatos reais, livros, animação (live action) ou algum filme antigo, penso duas vezes. Em alguns casos fico incomodada com essas variações, até que acontecem e termino gostando, e “Anne with an E” é a prova disso.
Tinha 10 anos quando descobri a existência de “Anne of the Green Gables”, uma minissérie canadense de 1985. Rapidamente me apaixonei pela história. Conheci a maravilhosa extravagância da protagonista, uma menina órfã que é adotada por um casal de irmãos fazendeiros, que junto com sua imaginação sem limites e autoconfiança a fizeram viver mil aventuras e adorei ver como ela conduziu a pequena cidade de Avonlea e seus habitantes.
Por isso, quando descobri anos depois que a Netflix havia co-produzido uma nova adaptação desse livro em forma de série com o canal de televisão canadense CBC, fiquei surpresa. Me chamou a atenção, mas depois do primeiro episódio, parei de assistir. Como sempre, não tinha gostado das mudanças.
Não muito tempo depois, resolvi dar outra oportunidade a ‘Anne with an E’, unicamente para redescobrir que era incrível, adorável, bem feito, com uma fotografia impecável, uma ode à imaginação.
A Anne Shirley do livro
“Anne of Green Gables” é um romance escrito pela autora canadense Lucy Maud Montgomery publicado em 1908. A história segue as aventuras de uma jovem órfã chamada Anne Shirley, que é enviada por erro para viver com um irmão e uma irmã de meia-idade, Marilla e Matthew Cuthbert, em sua fazenda “Green Gables” em Avonlea, na Ilha Prince Edward, Canadá.
Apesar de precisar de um menino para ajudar em casa, e de alguns problemas iniciais, Marilla e Matthew passam a amar Anne e decidem adotá-la. A imaginação vívida e a natureza falante de Anne muitas vezes a levam a problemas, mas seu coração bondoso e raciocínio rápido a tornaram querida pelos residentes de Avonlea. Ela faz muitas amigas na escola, sendo que Diana Barry se torna a sua melhor amiga. Por outro lado, nos primeiros capítulos do exemplar, ela tem uma rivalidade feroz com um garoto da escola, Gilbert Blythe, que com o decorrer do tempo se torna seu amigo, e em exemplares posteriores, seu esposo.
O primeiro livro cobre vários anos da vida de Anne, dos 11 aos 16 anos, e mostra seu crescimento e amadurecimento. A nossa protagonista aprende a superar suas inseguranças e ganhar confiança em si mesma, tornando-se uma excelente aluna e conquistando o coração das pessoas ao seu redor. No entanto, uma tragédia ocorre nas partes posteriores do exemplar, testando a resiliência e o caráter de Anne.
No geral, “Anne of Green Gables” é um conto emocionante e duradouro da jornada de um órfão para encontrar amor, aceitação e um lugar para chamar de lar.
Adaptando-se a uma geração
A série decidiu tomar liberdades criativas significativas com os personagens e a história deles em relação a protagonista, o que de alguma forma mudou o enredo principal. Mudanças que podem não agradar aos fãs obstinados do livro.
Uma das mudanças mais significativas feitas na série foi o tom mais sombrio que foi trazido para a história. Por mais que a história da Anne antes de chegar a Avonlea, em tanto no livro quanto na série, não era de flores e confetes, a abordagem que a protagonista tem no livro é de um espírito mais caprichoso e otimista. Isso é diferente da série que conta o sofrimento da Anne no passado com cenas muito mais dramáticas e fortes, transmitindo ao espectador, em muitos casos, um sentimento de dor e tristeza.
No livro, Anne é aceita pelos seus companheiros de aula, e são poucos com os que têm rivalidade, mas na série ela sofre de muito bullying por ser órfã. Os colegas de turma a rejeitam e zombam dela pelo seu físico. Além do bullying, nos primeiros episódios a série explora temas de trauma, assédio, abuso e saúde mental.
De acordo com um estudo, realizado pela Mind and Rethink Mental Illness, para a campanha “Time to Change”, 48% dos mais de 2000 entrevistados, disseram que um programa mudou sua opinião sobre o tipo de pessoa que pode ter essa doença, enquanto 31% disseram que esses programas os levou a conversar com entes queridos ou colegas sobre saúde mental.
Então, por mais que tenha sido uma mudança não tão bem recebida por alguns, ao buscar conscientizar a população a respeito desse tipo de assunto, a série vai além de contar uma história, mas tenta marcar uma diferença na sociedade.
Da mesma forma, aproveitando a personalidade dos personagens do exemplar, e criando novos, a série criou enredos para retratar temas como racismo, liberdade de expressão e de imprensa, menstruação, entre outros, sendo esses tópicos que não estavam presentes no livro.
De alguma forma essas mudanças me causaram interesse. Na época em que se desenvolve a história, temas assim eram pouco abordados por serem considerados um tabu na sociedade, razão pela qual, acredito que, o livro não foi escrito com esse viés. Por outro lado, a série surpreende mostrando que essas discussões sempre foram e continuam sendo problemáticas, por mais que seja o século XIX. Mudanças que podem ser positivas ou chocantes, dependendo da perspectiva do espectador.
Já outros assuntos, como o empoderamento feminino, estão presentes no exemplar sutilmente, mas na série é muito mais reforçado. Para ser sincera, é quase um dos temas principais.
Novos personagens
Para cobrir essas mudanças, os diretores e roteiristas tiveram que modificar a história de alguns personagens e adicionar novos, criando subtramas para eles que deram um novo auge à série.
Um exemplo é a Miss Stacy, a professora de Anne, que no livro tinha métodos de ensino diferentes aos tradicionais. Ela sempre apoiava a Anne para que continuasse sendo diferente, e se torna uma inspiração para a menina. Na série, continua sendo uma mestre diferente e decidida a quebrar as regras que a sociedade impõe como utilizando calça em lugar de saia e se recusando a usar corset. Assim, aproveitaram a personalidade e características dela para falar alguns dos assuntos já mencionados, mudando a história.
Dos novos personagens, meus preferidos foram Bach e Mary, duas pessoas pretas, utilizadas na trama para conscientizar sobre o racismo, e Ka’kwet, uma menina índígena cuja história conta um pouco do que viveu o povo de Mi’kmaq (conhecidos em Canada como “The people”) durante os anos 80 e 90′.
Embora algumas dessas adições tenham sido bem-sucedidas, outras foram desnecessárias, prejudicaram o enredo central, e o espírito original da história, além de fazer com que a história parecesse desconexa às vezes.
No entanto, a série fez um bom trabalho ao retratar a beleza idílica da Ilha do Príncipe Eduardo, que é uma parte significativa do charme e da doçura do livro, assim como outras partes.
Não é uma adaptação
O episódio 7 da terceira temporada, em que lutam a favor da liberdade de expressão e imprensa é um dos meus preferidos. A história de Ka’kwet e Mary me fez chorar, e esta série é uma das minhas preferidas.
Se colocarmos “Anne with an E” na categoria de melhor adaptação de um livro, a série errou feio. Mas ser uma adaptação não era a principal intenção dos criadores da série, já que para isso temos a minissérie de 1985, mas sim, aproveitar os personagens, os lugares e alguns enredos para criar um produto diferente, especial e único.
O que me leva a conclusão de que gostar ou não de “Anne with an E” pode se resumir ao gosto pessoal e ao quanto o espectador valoriza a fidelidade ao material de origem. No fim, todos deveriam dar uma oportunidade a esta série por mais que não seja fiel ao original.