Além do espectro
- 3 de abril de 2024
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- Theillyson Lima
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“Atypical” traz uma visão atípica do Transtorno do Espectro Autista: um ser humano completo
Isabella Maciel
“Eu sou esquisito, é o que todo mundo diz. […] Quando eu bato uma caneta em um elástico em determinada frequência e penso nas coisas que eu jamais poderei fazer, como pesquisar pinguins na Antártida ou ter uma namorada.” É assim que Sam Gardner, o protagonista de Atypical, começa a série. Sam é um adolescente com espectro autista e a roteirista Robia Rashid provou que pessoas dentro do espectro namoram e fazem diversas coisas que a sociedade julga não serem capazes.
A série Atypical é uma sitcom, composta por 4 temporadas, e narra a história de Sam, jovem de 18 anos diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista (TEA), aborda aspectos da vida familiar e a convivência com Elsa (mãe superprotetora), Doug (pai workaholic, que, consequentemente, é ausente) e Casey (irmã mais nova). Sam e Casey vivem o típico relacionamento de irmãos. Mesmo que Sam tenha uma neurodivergência, Casey nunca o tratou diferente. Eles brigam como qualquer outro casal de irmãos.
No primeiro episódio, a psicóloga de Sam, Julia Sasaki, fala para ele que pessoas dentro do espectro namoram e que ele pode encontrar alguém se quiser. Após essa conversa, Sam sai do consultório determinado em encontrar uma namorada e acaba conhecendo Paige Hardaway, mas ele não só entra de cabeça no desafio, como também começa uma busca de autoconhecimento.
Como o espectro autista é retratado
A produção de Atypical oferece uma visão honesta e humanizada da vida de alguém com Transtorno do Espectro Autista. A série evita estereótipos simplistas e apresenta Sam como um personagem multifacetado, com suas próprias aspirações e desafios. Isso ajuda a combater a tendência de retratar pessoas com deficiência como caricaturas romantizadas nas telas, oferecendo em vez disso uma representação empática.
Há uma preocupação em nerrelação à forma como a produção equilibra a representação precisa com o entretenimento comercial. Em alguns momentos, pode parecer que alguns aspectos do comportamento de Sam são exagerados ou dramatizados para criar cenas cômicas ou emocionais em favor do drama ou humor, o que levanta questões éticas sobre a exploração da deficiência como um dispositivo narrativo para gerar audiência. Um exemplo disso é a tendência de alguns episódios em destacar as dificuldades sociais de Sam de uma forma exagerada, muitas vezes para gerar risadinhas no espectador.
Há uma linha tênue muito fina dentro de sitcoms, pois o humor é uma ferramenta poderosa para transmitir mensagens e se conectar com o público, mas a mídia precisa ter responsabilidade para não ultrapassar essa linha, podendo gerar risco de reforçar estereótipos prejudiciais e desumanizar a experiência de pessoas dentro do espectro.
É possível ver a falta de diversidade dentro da própria comunidade autista na 2ª temporada. Embora Sam seja o foco principal, outros personagens dentro do espectro são poucos e distantes entre si, não refletindo a diversidade real dessa comunidade. Essa falta de representação reforça a ideia equivocada de que o TEA é uma condição homogênea, ignorando as experiências variadas de pessoas dentro do espectro onde há várias formas de ser. Autistas não verbais e com maior nível de suporte são muitas vezes esquecidos nas representações midiáticas.
Embora Keir Gilchrist tenha recebido elogios por sua interpretação de Sam, a direção poderia ter dado voz a indivíduos com experiência pessoal em deficiência, contribuindo para uma representação mais autêntica e inclusiva no elenco principal. É de extrema importância a diversidade e a inclusão não apenas na tela, mas também nos bastidores da indústria do entretenimento, para garantir que as vozes e experiências das próprias pessoas com deficiência sejam colocadas no centro da narrativa.
Irmandade a toda prova
Robia, roteirista da série, mostra uma perspectiva sobre os desafios e conflitos que surgem quando uma família é impactada pela deficiência, destacando as complexidades emocionais e os sacrifícios muitas vezes exigidos dos membros não deficientes.
Um exemplo claro disso é a dinâmica entre Casey e Sam ao longo da trama, que oferece uma visão sensível das emoções conflitantes da irmã em relação à deficiência de Sam. Por um lado, ela ama e se preocupa muito com ele. Por outro, ela se sente sobrecarregada e frustrada com as demandas extras colocadas sobre ela. Esse conflito interno é explorado de maneira sensível no episódio em que Casey desabafa com sua melhor amiga sobre as dificuldades de ser irmã de alguém com TEA, revelando as complexidades de seus sentimentos.
A série explora a pressão adicional colocada sobre a irmã devido às expectativas e preocupações de seus pais em relação a Sam. Em diversos episódios, Casey se sente sobrecarregada com a responsabilidade de ser uma figura de apoio para o irmão, ao mesmo tempo em que tenta equilibrar suas próprias ambições e desejos. Isso é evidenciado quando Casey se sente dividida entre apoiar Sam em um momento crucial e comparecer a uma importante competição esportiva.
O roteiro se desenvolve perfeitamente ao longo da série, amarrando vários pontos, como a relação entre Casey e Sam evolui ao longo da série. Embora inicialmente haja tensões e conflitos entre os dois, à medida que a história avança, é possível ver momentos de apoio mútuo e crescimento emocional.
Paternidade tóxica
Enquanto Elsa é retratada como uma mãe superprotetora, que muitas vezes se preocupa excessivamente com o bem-estar do filho, Doug é um pai ausente, cuja incapacidade de se envolver emocionalmente com Sam cria tensões adicionais dentro da família.
Embora o cuidado e preocupação com Sam sejam genuínos, as ações de Elsa revelam uma tendência para controlar excessivamente a vida dele, impedindo-o de desenvolver independência e autonomia. Essa dinâmica é explorada em vários episódios ao longo da série, destacando o conflito entre o desejo de Elsa de proteger Sam e a necessidade dele de crescer e se tornar mais independente.
Do outro lado, Doug é emocionalmente desconectado de Sam, o que causa tensão na família. Em vários episódios, é possível ver Doug se esquivando das responsabilidades parentais, preferindo se refugiar no trabalho. Um exemplo marcante é o episódio em que Doug se recusa a comparecer a uma reunião na escola de Sam, demonstrando sua relutância em enfrentar os desafios que acompanham a deficiência de seu filho.
Ao longo da série, há momentos de crescimento e redenção para ambos os pais. Elsa gradualmente reconhece os efeitos prejudiciais de sua superproteção sobre Sam e faz esforços para permitir que ele se torne mais independente. Da mesma forma, Doug começa a confrontar sua própria incapacidade de se conectar emocionalmente com o filho e faz tentativas de se envolver de forma ativa em sua vida.
Apesar de ter pontos a melhorar na representatividade do elenco, “Atypical” não deixa de ser uma sitcom necessária que traz luz sobre o autismo de uma maneira leve, envolvente e empática. Ao destacar as experiências de um jovem autista e sua família, a série desafia estigmas e promove uma maior compreensão e aceitação da neurodiversidade.