A linha tênue entre medo e desumanização
- 27 de outubro de 2015
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- Thamires Mattos
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Tolerância e compaixão, palavras tão profundas no conceito, mas esquecidas em meio à crises. O direito do “outro” ao longo da história da humanidade foi desrespeitado incontáveis vezes e de maneiras extremamente cruéis. Ao sermos bombardeados com tais notícias de violência, surge a pergunta: quando as diferenças deixarão de causar tamanhas atrocidades?
Camila Torres
Bastou a foto de uma criança morta em uma praia ser veiculada para que o mundo voltasse novamente os olhos para um problema que é latente em nossa sociedade desde os seus primórdios. O assunto que ganhou destaque nos últimos meses, além da crise financeira mundial e, no caso do Brasil, corrupção e impeachment , pode ser definido numa palavra/conceito talvez incomum aos nossos ouvidos: xenofobia. Originada do grego, o termo significa medo e/ou aversão ao estrangeiro.
Em entrevista ao Canal da Imprensa , José William Vesentini, doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP), explica que a xenofobia não se relaciona somente em à pessoa do estrangeiro em si, mas também aos hábitos, costumes, crenças, comida, e outras características que vem junto com indivíduo imigrante.O termo é “geralmente associado a um sentido contemporâneo de nacionalismo e a repulsa não se limita apenas a campos econômicos, mas também a questões étnicas e religiosas, envolvendo, ainda, a questão de segurança nacional, devido aos casos de terrorismo”, comenta.
Vesentini acrescenta também que a xenofobia é uma espécie de ciclo vicioso, porque povos que sofreram preconceito ao se instalarem em um novo local, depois de estarem bem estabelecidos acabam tomando atitudes xenófobas semelhantes às que sofreram, uma completa ironia.
A história se repete
Como já comentado, não é de hoje que a xenofobia ocorre como fenômeno social mundial. Elder Hosokawa, mestre em História Social pela USP e coordenador do curso de História do Unasp, explica que à partir dos séculos XV e XVI, após o surgimento de conceitos de Estado/nação, as políticas em prol da defesa nacionalista se intensificaram e o estrangeiro desde então é visto como uma potencial ameaça. O caso mais marcante é o da Segunda Guerra Mundial, em que seis milhões de judeus morreram nos campos de concentração de Adolf Hitler. Eles, os judeus, foram estereotipados como aqueles que estavam tirando as oportunidades dos europeus, servindo naquele contexto como bodes-expiatórios.
Hosokawa comenta que “quando um governante não tem saída, ele escolhe um problema que potencialmente pode tomar adesão do povo, cria uma teoria da conspiração, desvia a atenção do povo da fragilidade do governo […] A xenofobia tem esse papel de resolver problemas insolúveis”.
É importante destacar que a xenofobia mostra as suas garras com maior força nos momentos de maior fragilidade, como em meio à crises financeiras e conflitos ideológicos e religiosos.O interessante é que, países com homogeneidade cultural tendem a ser mais xenófobos, enquanto os que receberam muitas correntes migratórias em sua formação tendem a ser mais tolerantes. O problema é que, se um determinado indivíduo tem um comportamento absurdo como estrangeiro, se cometer um crime hediondo, por exemplo, é bem provável que essa atitude isolada se torne o estereótipo daquela nacionalidade ali.
A Alemanha, outrora palco da então considerada como a maior atrocidade da história, hoje mostra-se aberta para acolher os desabrigados. Pelo menos é o que tem dito Angela Merkel, a chanceler alemã, indo contra a população que já mostra sinais de temor. A Europa, inegavelmente, precisa de mão-de-obra jovem. Pensando nisso, até que ponto a ajuda dos países é ou será baseada na misericórdia e quando passa apenas a servir como resposta de estratégias político-econômicas?
Direitos e deveres
No âmbito legal, a questão do estrangeiro é uma preocupação bem antiga e já era tratada na mitologia grega nas leis de Zeus. É importante esclarecer as diferenças gritantes entre imigrante e refugiado. Em suma, o imigrante é alguém que muda para outro país por livre escolha em busca de melhores condições de vida. Mas, de acordo com a Convenção da Organização das Nações Unidas de 1951, refugiado é aquele que busca abrigo em outro país devido aos conflitos armados no país de origem ou por medo de perseguição devido às suas crenças religiosas.
Flávio de Leão Bastos Pereira, mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, explica que nos casos em que a xenofobia acontece massivamente, há um processo chamado de justiça de transição, que é executada nos seguintes passos: apuração da verdade, estabelecimento da memória, punição dos responsáveis por crimes contra a humanidade e reparação às vítimas. Porém, conta que tais punições ocorreram somente após a Segunda Guerra, no caso do nazismo, e destaca que até hoje a Turquia nega o genocídio contra o povo armênio.
A questão se intensifica ainda mais quando países de um mesmo grupo divergem em suas atitudes. Enquanto a Alemanha está de fronteiras abertas para receber essa leva maciça de refugiados, países como a Hungria e a Croácia fecham suas portas desesperadamente. Cabe à partir de agora, que tais nações negociem internamente e, talvez, decidam se irão adotar o sistema de cotas dependendo da capacidade econômica respectiva de cada um.
Essa tal de liberdade
Voltando alguns meses atrás, vale lembrar do ataque à redação do jornal satírico francês Charlie Hebdo . Pereira destaca que “quando um país recebe estrangeiros, esses tem que se adequar as leis desse país e, no caso da França, que é um país democrático e laico, há garantias de liberdade de expressão com limites.”
Mas no fundo, até onde usar este argumento é justo sem auxiliar no processo do aumento da xenofobia no cerne de uma nação?
Não generalizar, um adendo brasileiro
Hora de falar um pouco sobre nós, brasileiros. A história de rejeição do outro começou na colonização e foi mantido de geração em geração. É da Europa que parte a ideia de civilização, resultado da Revolução Industrial. Quem explica o assunto é Germana Ponce de Leon Ramírez, doutora em Geografia Humana pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Ela ressalta que “os países centrais é que constroem e imagem dos países periféricos, considerando-os como cultura primitiva”.
Um grande erro apontado por ela é a utilização do termo “o índio”. “Não existe o índio, existem os povos indígenas. Não existe a cultura, existem as culturas indígenas. O povo Xerente é diferente do Truká, que é diferente do Karajá”, explica. Hoje em dia, como resultado de um processo de construção social, os indígenas são vistos como preguiçosos. Resquícios dos estereótipos criados e espelhados ao longo dos séculos.
No Brasil existe ainda a questão da xenofobia regional, que vez ou outra entra em pauta geralmente em casos de conflito entre sulistas e nordestinos. Germana também ressalta o fato de os bandeirantes ainda serem vistos como heróis e as ruas do país ainda levarem os nomes de pessoas que mataram na ditadura militar. Para ela, isto é exemplo de que no brasileiro falta entendimento a respeito de quem é o outro, o que é a outra cultura.
Miscigenação não resulta automaticamente em igualdade
O hibridismo cultural que é herança brasileira começa a fazer cada vez mais parte também das nações do hemisfério norte, mesmo grande parte delas tentando impedir que isso aconteça. O Brasil, multicultural, infelizmente também é palco da ironia. Como um país tão miscigenado relata casos de agressão e ódio entre seu próprio povo em relação a imigrantes haitianos, cubanos e bolivianos?
Há esperança?
“Você leva no mínimo um século para mudar essa visão, é um processo gigantesco. Eu entendo que no momento que a gente pode falar sobre isso, o processo de mudança já começou. Fazer o outro repensar sobre isso. O que é feio? O que é bonito?” comenta Germana.
A doutora exemplifica a questão utilizando o caso da língua brasileira. “Nosso idioma seria alguma língua indígena que a gente não sabe. Podia ser potiguara, caingangue, eu nem sei qual é a minha língua”, enfatiza. Para ela, isto interfere na identidade do povo. Os brasileiros se apegam a outros elementos. Preferem acreditar-se descendentes de italianos, alemães, etc. “Mas e do escravo? Alguém diz que é descendente de escravo? Eu sou brasileira, portanto, sou o fruto de vários povos”, reflete.
O próximo bode-expiatório
A última grande repercussão nacional aconteceu no dia 13 de outubro, dia em que o Ministério da Justiça foi apoiado e atacado (simultaneamente) devido a uma campanha contra a xenofobia. A peça publicitária estampava um jovem negro com a seguinte mensagem: “Meu avô é angolano, meu bisavô é ganês. Brasil, a imigração está no nosso sangue. Matheus Gomes | 18 anos.” A mensagem foi ponto de partida para milhares de comentários a respeito da escravidão no Brasil. E, do mesmo modo que alguns saíram em defesa ao direito dos negros, houve os que rebateram a ação. Trataram o assunto de forma crítica, fazendo parecer que o discurso era uma espécie de teoria da conspiração. Reinaldo Azevedo, por exemplo, partiu deste viés ao abordar a questão em sua coluna online na Veja .
Talvez o deslize tivesse sido menor se ele tivesse se atentado à legenda da foto da propaganda: “Há cinco séculos, imigrantes de todas as partes do mundo ajudam a construir nosso país”. Se o objetivo era lutar contra a xenofobia, a primeira impressão não foi nada boa. Mas se houve alguma validade na ação é o fato de que a discussão não acabou. No fundo, ela apenas engatinha.
Carlos Eduardo Lins da Silva, em seu texto publicado em 08/09/2015 na edição 867 do Observatório da Imprensa , questiona o papel da mídia nesses conflitos. Será que ela (a mídia) é capaz de prever e antecipar tais problemas sociais? É possível prevenir tais conflitos? E se sim, pode realmente mudar o rumo dos acontecimentos?
Essas perguntas soam quase que retóricas e ficam soltas pelo ar. E é sobre isso que a nossa edição dessa quinzena quer fazer você parar para refletir.