A linha tênue entre a homenagem e o sensacionalismo na morte de Marília Mendonça
- 11 de outubro de 2023
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- Theillyson Lima
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A cobertura midiática da morte da cantora brasileira foi marcada pela perda da ética jornalística, exposição indevida da intimidade da artista, busca por audiência a todo custo e muito mais.
Letícia Casemiro
Existe algo que remeta mais a essência jornalística do que a cobertura de tragédias?
5 de novembro de 2021. Em uma tarde de sexta-feira qualquer, no tão aguardado fim de semana, uma notícia surpreendeu todo o país: “Cantora Marília Mendonça morre aos 26 anos em acidente aéreo”. Marília Mendonça, conhecida como a rainha da sofrência e uma das maiores vozes da música brasileira, foi uma das cinco vítimas de um acidente de avião que caiu numa serra em Piedade de Caratinga, no Vale do Rio Doce, no oeste de Minas. A princípio não se sabia se a cantora realmente estava a bordo da aeronave.
Logo, os jornalistas entraram em contato com a assessoria de imprensa da artista que confirmou que ela estava, sim, a bordo, mas que estava bem e havia sido resgatada com vida. Horas depois disso, a TV Globo exibiu ao vivo imagens de seu corpo, sendo retirado do avião bimotor, parcialmente coberto por uma lona, que confirmou aos demais observadores que a notícia de que ela estava bem era falsa. Só então, horas depois do primeiro anúncio, a assessoria da cantora volta atrás e confirma sua morte.
Nesse momento, também foram confirmadas as mortes do produtor de Mendonça, Henrique Ribeiro, e de seu tio, Abicieli Silveira Dias Filho, além do piloto Geraldo Martins de Medeiros e do copiloto Tarcísio Pessoa Viana.
Entre o furo jornalístico e a responsabilidade
O rompimento com preceitos da ética jornalística foi notado desde os primeiros plantões que noticiavam a morte da cantora até as mais completas reportagens que vieram depois. A invasão à sua privacidade, exposição de suas imagens, distribuição de informações falsas e a usurpação de um momento tão delicado para a acumulação de cliques expõem o jornalístico medíocre praticado.
O jornalista deve ter sempre uma postura ética, compromisso com a verdade e senso de responsabilidade. É seu dever fazer a apuração de notícias com precisão e buscar fontes confiáveis para transmitir informações corretas ao público. Qualquer coisa que se distancie disso pode até usar da linguagem jornalística, mas não possui a sua essência.
Na profissão, usamos o termo furo jornalístico para expressar uma notícia como nova e em primeiro lugar. O furo é o sonho de basicamente todo jornalista, todos meios de comunicação estão a todo tempo competindo por ele. Com o acidente de Marília, não foi diferente. Os jornais entraram em uma luta para descobrir quem seria o primeiro a disponibilizar novas informações sobre o acidente. Mas, o desejo de levar a notícia em primeira mão, gerou uma série de erros.
Desde o furo de notícia houve uma sequência de informações incompatíveis sobre o que realmente tinha acontecido. Vivemos em um mundo onde o compartilhamento de informações é algo rápido, mas que a apuração, muitas vezes, não é feita da maneira correta. A necessidade de uma reação apressada dos acontecimentos levou os jornais a publicarem cada novo detalhe descoberto, sem antes se certificar de que as informações eram de fato verdadeiras.
Em tempos de ultra velocidade, como lidar com os momentos de crise? Informações sobre um acidente dessa escala são parte de um compromisso sério de respeito com as famílias, equipe e fãs dos envolvidos. Por esse motivo, as equipes de comunicação precisam aguardar o momento em que os dados da tragédia possam ser passados de forma oficial. O tempo de resposta é, sim, importante. Até porque é ele quem ajuda a desmentir a maior parte dos boatos. Mas, até que se tenha uma informação completa, o melhor é esperar e dizer apenas que as informações ainda estão sendo apuradas.
Quando a morte de uma pessoa pública é noticiada, muitos rumores são levantados. O problema, neste caso, não foi o compartilhamento de um boato, mas sim de uma informação oficial incorreta. Por volta das 16h30 daquele dia, a assessora de imprensa de Marília informou ao G1 que a cantora e todos os que estavam no avião teriam sido resgatados e estavam bem e às 16h50 voltou a confirmar a informação. Por volta das 17h15 a equipe disse que o contato com o empresário tinha sido perdido e que não podia mais confirmar que os passageiros do voo estavam bem. Às 17h45, a assessora informou em nota oficial que a cantora havia morrido.
Contrapondo as duras críticas e acusações de vazar a falsa informação propositalmente, a assessoria garantiu que todas foram baseadas em fontes confiáveis a todo tempo e que em nenhum momento o equívoco foi intencional ou com intenção de amenizar a situação. Através da nota oficial, explicaram que menos de vinte minutos após a informação de que todos estavam bem e sendo conduzidos ao hospital, as mesmas fontes notificaram a fatalidade e que a notícia foi repassada, primeiramente, aos familiares das vítimas.
O sensacionalismo e a busca pela audiência
O ser humano possui um interesse inexplicável em notícias que possuem a morte como ponto final. Talvez porque quando ela acontece com artistas, não parece real. É distante, como se fosse apenas um personagem de uma série que tínhamos um carinho especial ou de um filme com protagonistas enfermos que você já sabe o final, antes mesmo dos créditos rolarem. Deve ser por isso que é tão fácil para os veículos de informação os enganarem, fazendo-os achar que não há nada de errado com a maneira insalubre que expõem a intimidade daqueles que perderam suas vidas.
Isso fica explícito, no caso de Marília Mendonça, quando as suposições de que a cantora não estava viva começaram após a TV Globo exibir corpos sendo retirados dos destroços do avião. Mesmo que a imagem estivesse muito afastada para a identificação de rostos, os internautas foram rápidos para identificar a cantora através de pedaços de roupas visíveis no corpo semi coberto sendo movido. E logo, essas imagens foram jogadas e compartilhadas em loop na internet.
Além disso, também expõem a falta de ética apresentada pela emissora. Como consta no capítulo III, artigo 11, parágrafo II do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, “o jornalista não pode divulgar informações de caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em cobertura de crimes e acidentes”.
Ao analisar outros casos que tiveram destaque, percebi que o de Marília foi tratado com uma discrepância. A comoção dos fãs e a movimentação da internet com o caso, foi usado como justificativa para a invasão total da privacidade da família, que passava por um momento tão difícil, criando um frenesi que originou em uma corrida entre os jornais com a intenção de exibir o máximo de informações possíveis, por quanto tempo fosse necessário.
A audiência estratosférica que o caso estava recebendo não podia ser desperdiçada. Segundo o site Metrópoles, os índices atingidos da Rede Globo ficaram 202% acima do habitual durante a exibição das homenagens. O que fez a emissora alterar sua rota habitual e se dedicar a produzir mais conteúdos sobre a artista.
Na TV Record, a cobertura também foi longa. No dia seguinte ao acidente, a emissora informou sobre os preparativos para o funeral, em Goiânia. Mostrando toda a movimentação no ginásio Goiânia Arena. À tarde, uma edição especial do Balanço Geral deu sequência aos trabalhos com imagens do funeral, que devia ter sido algo privado, e reportagens sobre a importância da cantora.
Na Band, Datena apresentou uma edição Especial do Brasil Urgente, que começou na hora do almoço.O apresentador conduziu de forma respeitosa, interagindo com repórteres e também entrevistou alguns artistas. Já o SBT só mencionou o assunto depois de horas e não promoveu alterações na grade de programação.
Invasão da intimidade e o respeito à memória
Para o público, a cobertura totalmente invasiva pode ter sido uma forma emocionante e curiosa de poder conhecer intimamente a vida da artista, afinal não seria possível de outra forma. Para a família, uma maneira de mantê-la viva, de alguma forma, na memória de todos os brasileiros. Mas, que serviços foram prestados à Marília? Parece que todos os seus direitos acabaram quando o seu coração parou.
Como será que ela teria se sentido com uma cobertura tão agressiva e que estava sendo recebida com tanta facilidade pelo público? Como ela teria se sentido se tivesse visto que após sua morte, uma das coisas que as pessoas mais comentavam e que foi alvo de piada era o seu corpo? Onde estava a ética quando os sites jornalísticos destacavam a todo tempo suas mudanças estéticas? Será que nós mulheres realmente não somos consideradas mais do que isso?
Como será que ela teria se sentido com a tamanha exposição de seu filho,Léo, que na época tinha apenas um ano de vida, sofreu? Com todos os rumores e palpites de com quem sua guarda ficaria espalhados pela internet? Com pessoas tentando atribuir o evento que levou sua morte a estampa da roupa que ela usava em seus últimos momentos? Com as especulações sobre o futuro de sua carreira sobrepondo diversos outros assuntos muito mais importantes?
E como ela teria se sentido se soubesse que, dois anos após sua morte, ela seria violada mais uma vez, quando uma foto do documento de sua autópsia fosse jogada nas redes sociais e compartilhada tão rápido e naturalmente?
Todas essas perguntas são simples de responder quando, anos atrás, em 2019, Marília deixou um comentário em suas redes sociais que diz bastante sobre o que ela esperava que pudesse receber como respeito pós morte:
“É muito complicado contar com a ética na prestação de serviços de qualquer forma… minha gravidez foi descoberta por um exame de sangue vazado e tudo que eu faço é dessa forma… dá medo até de morrer pq as pessoas não respeitam nem esse momento e conhecemos casos parecidos…”, desabafou em seu twitter no dia 13 de agosto de 2019.
Parece que todos não fizeram nada além do que ela esperava. Os veículos tiraram todos os seus sentimentos da equação quando decidiram usar a fatalidade de seu acidente como maneira de se promover. Agindo de forma não só antiética mas desumana. Marília Mendonça merecia mais do que isso.