A invisibilidade dos povos originários sob a perspectiva do colorismo
- 29 de março de 2023
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- Theillyson Lima
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Uma tentativa de extermínio da maior diversidade e pluralidade do Brasil.
Natália Goes
Povos, raças, cores e culturas. Um Brasil que nunca foi somente um Brasil. O famoso Pindorama já era plural, com uma diversidade de povos, etnias, línguas e cultura. Os povos originários que habitavam o Brasil antes da invasão dos portugueses, já mostravam a pluralidade de um território rico em diversidade.
Esse território, que era habitado por cerca de dois milhões de indígenas, era chamado de Pindorama (Terra das Palmeiras), um local mítico dos povos tupis-guaranis. Os tupis foram os primeiros indígenas que tiveram contato com os invasores.
A partir da invasão dos portugueses, as marcas na sociedade foram profundas. O grande encontro das caravelas entre os portos do Pindorama desaguou na modificação dos povos através da miscigenação entre negros, indígenas e europeus.
São inúmeras as raças que formaram a população brasileira: indígenas, africanos, imigrantes europeus, árabes, hispanos e asiáticos. O embranquecimento no país criou relações e cenários desiguais de acordo com o tom da pele.
Colorismo Indígena
A política absurda de extermínio criada após o período colonial, apoiada pelo governo da época, se deu através do embranquecimento da população. Ela aconteceu por meio do crime de estupro contra mulheres negras e indígenas. O massacre gradativo, a violação dos corpos das mulheres indígenas mostra um país que tem suas raízes dentro de um conceito que consiste na discriminação pela tonalidade da cor da pele.
A desumanidade desse processo ainda se encontra na contemporaneidade, na tentativa de dizimar, apagar a história oficial e aniquilar através do embranquecimento a ancestralidade dos povos originários e sua identificação. Identificação essa que não se resume a raça parda, pois segundo o IBGE, indígena é cor e raça/etnia, indígena não é pardo.
A miscigenação, além de ser fruto de violências sexuais, também foi caracterizada pelas relações de poder que o branco impunha sobre o corpo das mulheres e homens indígenas: a dominação. Diferente do corpo santificado das mulheres brancas, os corpos das mulheres indígenas eram vistos como objeto sexual.
Ainda hoje, após cinco séculos do ciclo de colonização brasileira, os corpos indígenas continuam sendo vistos sob uma perspectiva de satisfação sexual, ignorando por completo sua identidade, etnia e cultura. Sequer são colocados como iguais, como se assumissem o que o branco viu ao chegar em solo brasileiro: apenas selvagens.
Quando se fala em indígena, a curiosidade cai pela metade. Indígena? “Não me interessa, é chato, não me diz respeito”. Será mesmo? A miscigenação nos conta sobre a nossa ancestralidade indígena e as diferentes tonalidades de pele existentes.
Preconceito por fenótipo
A supervalorização e a hierarquização das raças acarreta na inferiorização dos povos que não tem o fenótipo valorizado, ou seja, negros e indígenas. A distinção se vale de um discurso racista para tentar inferiorizar e legitimar os brancos.
Para começar, ser indígena transpassa questões de fenótipos impostos pelo colonizador. Ser indígena vem do nascimento. Você não se torna indígena por suas características físicas. Você nasce indígena. É sobre pertencer, é sobre viver a cultura e ser reconhecido pelo seu povo. Existe uma grande diversidade de povos indígenas no Brasil que não são percebidos, pois a ideologia colonizadora criou um estereótipo de “índio”.
Aliás, índio é o termo que o colonizador invasor utilizou quando achou que tinha chegado à Índia. É um termo pejorativo e não traduz toda a diversidade dos povos indígenas que vivem no Brasil. É comum, após a utilização da palavra índio, ouvir frases que reforçam o estereótipo de que o indígena não fala a língua portuguesa corretamente, por exemplo.
Cada povo indígena possui diferenças entre si. Povos da costa do Brasil, que tiveram seus territórios e vidas invadidas pelo branco opressor, foram mais miscigenados e sua cultura teve diversas influências. Outros povos foram menos miscigenados no interior do país, como os povos originários que vivem na Amazônia. Mas não significa que um povo é mais indígena que o outro. Essa hierarquização não existe.
O padrão criado e disseminado de que indígenas seriam de cor “avermelhada”, “mais morenos”, terem cabelos lisos, falarem a língua portuguesa de forma incorreta, estatura baixa e terem olhos puxados é um padrão colonial que grita, reverberando em todos os cantos do Brasil.
No entanto, essa é uma forma de matar a diversidade e pluralidade dos povos originários. Cada etnia tem suas características físicas, linguísticas e culturais. Dessa forma, vemos o colorismo ou pigmentocracia se fazendo presente tanto no processo de embranquecimento e segregação dos povos originários, quanto definindo locais de acesso e quais acessos os indígenas terão.
A invisibilidade dos povos originários na mídia
Alguns espaços, como a política, as redes sociais, estão sendo ocupados aos poucos por povos indígenas, mas ainda há um longo caminho a ser percorrido. É curioso que mesmo com o seu colorido e sua fascinante diversidade, a pauta indígena ainda seja invisibilizada através dos estereótipos.
Retorno ao ponto: quando se fala em indígena, qual a primeira imagem que vem a sua mente? A mídia e o cinema retratam todos os povos originários de uma só forma, escondendo novamente a diversidade e pluralidade. Vale ressaltar que no Brasil, segundo o censo do IBGE de 2022, existem 305 etnias ou povos e falantes de 274 línguas indígenas. Isso comprova que não existe um padrão de características indígenas.
Sobre a realidade, a mídia e o cinema retratam os indígenas como silvícolas, aqueles que nascem ou vivem na selva. Mostram para as pessoas que eles são como a índigena do filme Tainá, que vive em meio a floresta e defende seu território e a biodiversidade. Ou ainda retratam, de forma preconceituosa, como coitados, sem força, sem saúde, povos que não conseguem defender seus territórios e são iguais em suas lutas.
A série da Netflix “Cidade Invisível” tenta diminuir desequilíbrios ao trazer protagonistas indígenas em sua segunda temporada. Mas há ainda muitos questionamentos sobre a produção desse conteúdo. Quem está por trás dele entende do que fala? Onde estão os comunicadores indígenas? Apenas nas redes sociais? E os jornalistas, apresentadores, repórteres, escritores indígenas, onde estão? Quantos indígenas você vê quando liga a televisão? Indígenas são silenciados.
O pertencimento desses povos em lugares privilegiados e institucionalizados não acontece. Muitos não conseguem ter suas falas legitimadas pelo processo estrutural e racista de como o Brasil foi construído. A tentativa de extermínio que aconteceu na era colonial, ainda acontece atualmente quando os povos originários são invisibilizados.
Nosso sangue é da mesma cor
Para quem imagina que o silenciamento de indígenas é um capítulo passado da era colonial, vale a pena lembrar que em dois anos do desgoverno Bolsonaro, de 2019 a 2020, foram assassinados 296 indígenas. A perpetuação da violência, dos abusos e do silenciamento é evidente diariamente.
O sangue derramado dos indígenas é da mesma cor do sangue dos outros povos e pede justiça. A cor da pele e características físicas, que antes eram fatores utilizados para identificar a condição de escravo, passaram a ser também usadas para estigmatizar e marcar a inferioridade social.
Falar sobre todo o processo de miscigenação, embranquecimento, colorismo e identidade é entender como o Brasil caminha a passos de tartaruga para compreender os impactos e analisar o processo pigmentocrático. Análise essa que precisa ser feita com o fim de desarticular os nós e correntes para dar voz e visibilidade aos povos originários, os quais precisam ser protagonistas das suas próprias histórias, mostrando sua narrativa. O ideal seria que esse texto tivesse sido escrito por um indígena, alguém com propriedade para falar sobre o assunto.
Porém, para que isso ocorra, o combate ao preconceito, a supervalorização e a hierarquização das raças precisa ser enfrentado de forma severa pelo Estado por meio da educação e de políticas afirmativas, com o intuito de desenvolver a inserção dos povos originários em lugares privilegiados de poder e fala, além de ambientes institucionalizados.