A herança de mulheres “escuras como o céu noturno”
- 29 de março de 2023
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- Theillyson Lima
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Utilizando a poesia e sua paridade com a vivência factual de mulheres pretas em toda a sua vida.
Hellen de Freitas
A poesia sempre foi conhecida por externar através de melodiosos versos a verdade inibida por um mundo que só aceita a veracidade de forma mais branda. Pensando dessa maneira, me perguntei se alguma poesia poderia retratar da melhor maneira um assunto tão complexo e multifacetado como é a mulher preta.
Victoria Santa Cruz era afro-peruana, poetisa, estilista, coreógrafa e ativista do movimento preto. A artista criou junto ao seu irmão o grupo teatral Cumanana, o primeiro a ser inteiramente integrado por negros. Ela também fundou a Companhia Teatro e Danças Negras do Peru, fazendo apresentações nos melhores teatros e na televisão.
A ativista era uma mulher talentosa e conhecida por sempre lutar por aquilo que acreditava. No entanto, para mim, o seu maior trabalho não foi ficar conhecida mundialmente ou suas turnês aclamadas, nem mesmo as diversas premiações em seu nome. Na verdade, a obra prima foi repassar a vivência de uma mulher preta por meio da arte das palavras.
Através da sua poesia “Me gritaram negra”, ela retrata o ciclo de vida de uma mulher preta e os altos e baixos que a acompanham. Neste artigo, vou mostrar como a vida literalmente imita a arte.
Infância
Tinha sete anos apenas,
apenas sete anos,
Que sete anos!
Não chegava nem a cinco!
De repente umas vozes na rua
me gritaram Negra!
Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra!
“Por acaso sou negra?” – me disse
SIM!
“Que coisa é ser negra?”
Negra!
E eu não sabia a triste verdade que aquilo escondia.
A infância para muitos é apenas o período em que você aprende um pouco sobre como o mundo funciona, o que pode e não pode, o que são as cores, quanto é 1+1 e o certo e errado.
Claro, apesar do que alguns pensam, os pretos também passam por esse aprendizado, contudo, o funcionamento do mundo para nós é um pouco diferente. Após aprendermos cores primárias e matemática básica, a aquisição do conhecimento mais imprescindível é o colorismo. É parecido com aprender que o mar é azul e a grama é verde, a diferença é que compreendemos que a nossa cor preta, escura como o céu noturno, vai desencadear situações que a cor branca, como a paz, nunca sonharia em passar.
A percepção sobre sua própria etnia não é fácil. Eu nem mesmo me lembro exatamente em que momento entendi que era diferente. É aquele instante em que os olhares tortos, as risadas e piadas com o meu cabelo crespo tinham um motivo, ou até mesmo a explicação para a minha mãe, mesmo sendo parda, ter a sua maternidade questionada apenas por ter dado à luz a dois filhos “escuros como o céu noturno”.
Dói lembrar de tantas instâncias em que realmente assimilei a realidade: no futuro, poderia fazer parte das 32% das mulheres pretas ou pardas entre 15 e 29 anos que não estudavam nem estavam ocupadas no Brasil. Pior: poderia ser do grupo mais afetado pelo feminicídio no país, afinal, 62% das vítimas desse crime são pretas. Finalmente tive a percepção de que a cor comanda tudo.
Juventude
Negra!
E me senti negra,
Negra!
Como eles diziam
Negra!
E retrocedi
Negra!
Como eles queriam
Negra!
E odiei meus cabelos e meus lábios grossos
e mirei apenada minha carne tostada
E retrocedi
Negra!
E retrocedi . . .
Negra! Negra! Negra! Negra!
Negra! Negra! Neeegra!
Negra! Negra! Negra! Negra!
Negra! Negra! Negra! Negra!
E passava o tempo,
e sempre amargurada
Continuava levando nas minhas costas
minha pesada carga
E como pesava!…
Alisei o cabelo,
Passei pó na cara,
e entre minhas entranhas sempre ressoava a mesma palavra
Negra! Negra! Negra! Negra!
Negra! Negra! Neeegra!
Até que um dia que retrocedia , retrocedia e que ia cair
Agora, já sei como funciona. Na verdade, sei tão bem que a realidade machuca. Quando pequena já era desagradável, entretanto, o ser humano tende a ficar mais maldoso com o passar do tempo.
Não sou mais criança e entendo perfeitamente o meu lugar no meio de tudo isso. O padrão infelizmente está longe da minha realidade. Para piorar, não via ninguém como eu para me espelhar. A juventude é para ser um período no qual os namoradinhos surgem, roupas e maquiagem se tornam legais e passeios com as melhores amigas todo final de semana viram rotina.
Também é aquela época na qual a comparação é exacerbada. Como mulher, isso acaba afetando diretamente a autoestima. Como mulher e negra, então, a sua autoestima é praticamente inexistente. É capaz de até mesmo de ser considerado generalização, mas infelizmente é o cenário de muitas.
Podemos culpá-las? Toda a estrutura social mostrava que a cor preta não era bonita. Apesar de não ser falado diretamente, todos sabiam que essa era a verdade, afinal, não havia modelos de revista como nós ou propagandas que nos incluíssem. Para completar, os programas de televisão apenas nichavam personagens pretas em papéis para serem escravas, domésticas e colocadas em situações secundárias.
Um dos exemplos que temos de protagonistas na televisão brasileira é a Preta. Com um nome “criativo e inovador”, Preta é a personagem principal da novela Da cor do pecado (TV Globo, 2004), na qual mais uma vez as ideias para o título e enredo da obra se superaram, resultando em um produto “revolucionário e claro, nada racista”. Espero que você tenha percebido minha ironia.
Em uma novela que evidencia em seu título a comunidade preta, é de se esperar um elenco em peso da mesma raça. Sinto lhe informar que o nome, além de ilustrar o claro “apreço” a nós, lindas pessoas da “cor do pecado” e estar “longe” de sexualizar qualquer mulher preta, é um clickbait das antigas, em que entre 51 personagens principais apenas quatro são negros. Mulher, há apenas uma.
Não podemos esquecer da Tia Nastácia, cozinheira de mão cheia e uma das personalidades do famoso Sítio do Picapau Amarelo. Por ser uma história infantil, algumas situações passam despercebidas, mas frases como“Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima”, não abrem para nenhum outro tipo de significado. Monteiro Lobato, o autor da obra, é conhecido por seus posicionamentos racistas.
A historiadora Lucilene Reginaldo escreveu para a Folha de São Paulo sobre o assunto e enfatizou a maneira como Nastácia é representada: “Tia Nastácia era sempre a ‘bola da vez’: ingênua, simplória, medrosa, serviçal e alvo de racismo e discriminações explícitas. Tudo em perfeita consonância com a hierarquia racial: na base da pirâmide, a mulher negra”.
Agora, me diga: se fosse você inserido em um mundo em que tudo o que se atribui a sua essência exterior é correlacionado a algo feio, com conotação sexual ou de inferioridade, qual seria a sua posição ao se olhar no espelho e ver a encarnação de tudo o que é odiado pela sociedade?
Eu cansei de sonhar que era branca. Já alisei meu cabelo por ele ser “duro e ruim” e infelizmente, às vezes, até mesmo atualmente, me pego pensando que me enxergam apenas como um objeto sexual ou uma parceira “exótica” demais para se relacionar. Oras, vamos lá, entre tantas mulheres lindas de pele clara e lindos cabelos cacheados, ondulados e o padrão liso, quem escolheria o completo oposto do retrato dito como feminino?
Claro que sei do meu valor e minha beleza. Do mesmo modo, outras mulheres pretas entendem isso. Sim, também sabemos que o mundo evoluiu e os tempos são diferentes, mas após anos e anos com a mesma ideologia é complicado se desprender daquilo que era ditado como uma verdade absoluta.
Nos acostumamos com os comentários racistas velados em forma de elogios. Era natural ouvir cotidianamente frases como “Você é até que bonita para uma preta” ou então “É difícil a gente ver meninas negras bonitas por aí, mas até que você consegue ser”.
O mais doloroso de tudo é saber que todos os fenótipos, cultura ou cabelo odiados em nós mulheres pretas são amados em outras circunstâncias. Odeiam nossos lábios grossos, contudo, pagam por preenchimentos labiais. Nossas tranças afros são sujas e fedidas, mas ao serem usadas por brancas, se revelam como algo da moda e estiloso.
Me pergunto o que é necessário ser feito para sermos consideradas aceitáveis, no entanto, acredito que eu e você já sabemos a resposta.
Aceitação?
Negra! Negra! Negra!
E daí?
E daí?
Negra!
Sim
Negra!
Sou
Negra!
Negra
Negra!
Negra sou
Negra!
Sim
Negra!
Sou
Negra!
Negra
Negra!
Negra sou
De hoje em diante não quero
alisar meu cabelo
Não quero
E vou rir daqueles,
que por evitar – segundo eles –
que por evitar-nos algum dissabor
Chamam aos negros de gente de cor
E de que cor!
NEGRA
E como soa lindo!
Victoria acaba essa linda melodia demonstrando a libertação e a aceitação. Ela exprime o amadurecimento e a felicidade por perceber que o problema não está na cor e sim nas pessoas e seus próprios preconceitos.
Sabemos que se aceitar é só eliminar um entre vários outros infortúnios que estão na longa caminhada de ser uma mulher preta. Aquele sentimento de sempre sentir a necessidade de estar a cinco passos à frente de qualquer outra pessoa seja por gênero ou etnia ainda vai permanecer estagnado no mesmo local.
Não me leve a mal, ser uma mulher negra é inexplicável! Eu nunca trocaria a minha cor, meu cabelo e minha essência, pois elas fazem parte de mim de maneira intrínseca. Apesar dos altos e baixos, a verdade é que “todas” nós amamos e vemos a nossa beleza, inteligência e valor apesar e devido à cor de pele.
Em síntese, é primordial se conhecer, saber das suas competências e do tamanho da sua grandeza. É se amar como indivíduo, mulher e preta. Por outro lado, e pela primeira vez, eu elucido algo diferente daquilo escrito pela Victoria: a verdadeira aceitação é entender que nem tudo está em nossas mãos e que a autossuficiência por vezes não será o bastante para o resto do mundo que ainda se apega e estrutura toda uma população em ideologias arcaicas.
Eu amo ser o que sou, mas odeio ter medo de não chegar perto de concretizar sonhos profissionais devido a diferença de pagamento. Eu amo ser o que sou, mas odeio saber que o amor para mim virá de uma maneira diferente do usual. Eu amo ser o que sou, mas me pego pensando se ser preta “soa tão lindo” como Victoria Santa Cruz exprimiu em suas fortes palavras.