O estrangulamento da saúde
- 8 de junho de 2015
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- Thamires Mattos
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Thamires Mattos
O aposentado Dario Ribeiro acabou de completar 70 anos. Muitos destes anos foram cheios de vitalidade, mas a partir do ano 2000 houve uma ruptura nesse ciclo: o ex-funileiro sofreu um acidente que deixou seu pé esquerdo paralisado. Depois de muitos meses internado, utilizando o plano de saúde anteriormente contratado, continuou o tratamento que consistia em consultas com especialistas e diversos exames. Em síntese, gastou “uma fortuna” com o plano de saúde e nenhum benefício adveio disto. O tratamento recebido na rede pública é igual ou melhor que o atendimento proporcionado pelos convênios.
Pouco investimento, atendimento deficiente
Dario deixou de pagar o plano de saúde e cancelou a assinatura. “Se eu recebesse um atendimento decente, não teria parado de utilizar o serviço. Era caro, mas deveria compensar. Pensei: ‘já pago muito imposto. Está na hora de ir para a fila do SUS’”, conta. Hoje, com o SUS, afirma que a disponibilidade dos médicos é praticamente a mesma e que está gastando menos com exames. “De vez em quando aparece algo caro, mas mantenho uma poupança bancária para emergências. O preço dos serviços de saúde é absurdo”, complementa.
O aposentado faz parte dos 68,5% de brasileiros que depende do serviço público para ter acesso aos cuidados básicos de saúde. Os que possuem planos de saúde compõem, em média, 28%, sendo que a porcentagem varia conforme a região. No sudeste a porcentagem é de 36,9%, enquanto na região Norte é apenas de 13,3%. Os dados foram divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no dia 2 de junho de 2015. Mais de 80 mil domicílios foram visitados. 38% das pessoas que optaram por pagar por planos de saúde ou odontológicos afirmam gastar mais de mil reais mensais com o serviço.
Para Lanny Soares, biomédica e doutora em ciência médica pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), o sistema de saúde brasileiro está “saturado”. Em entrevista especial ao Canal da Imprensa, ela enfatiza que “existem alguns setores que não conseguem ser atendidos”. Um exemplo são as consultas a odontologistas. De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) 2013, 55,6% dos brasileiros não comparecem ao dentista anualmente. A recomendação dos profissionais é que os check-ups sejam semestrais. Embora a Organização Mundial da Saúde (OMS) não recomende um número desejável de dentistas por habitante aos países-membros, profissionais estimam que o ideal estaria em torno de um dentista a cada 1500 pessoas. No Brasil a média é promissora: um especialista em saúde bucal a cada 737,2 habitantes. Segundo o Conselho Federal de Odontologia (CFO), o país possui o maior contingente de dentistas do mundo, contando com mais de 264 mil profissionais. Esse volume representa cerca de 20% dos dentistas do mundo. Ao divulgar essas informações, veículos midiáticos usaram em demasia a palavra “desigualdade” para descrever a situação do país – afinal, a pesquisa continua, e revela que o atendimento ainda é deficiente.
A PNS também revelou que, entre as pessoas com 60 anos ou mais, 41,5% haviam perdido todos os dentes. Para o odontologista Sandro Limberger que trabalha há aproximadamente 20 anos na rede pública, a saúde bucal é esquecida pelo SUS. Segundo ele, não existem profissionais suficientes trabalhando no sistema para atender a demanda de tratamentos.
“Mesmo com investimentos federais, estaduais e municipais, temos uma quantidade de verba que não é suficiente para sanar todos os problemas da saúde pública. Em muitos lugares também há déficit de profissionais. Ainda por cima, temos investido muito na saúde curativa e não na preventiva. Somando a isso problemas na gestão, o custo da saúde realmente se torna muito alto”, frisa Lanny.
Curativo provisório
O Mais Médicos é uma iniciativa do Governo Federal para diminuir a falta de profissionais, levando o atendimento até as regiões mais remotas. Para a realização do projeto, o Estado contratou cerca de 11 mil médicos estrangeiros somente em 2013, ano de início do programa. No entanto, uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) revelou que 49% das primeiras cidades a receberem os participantes do Mais Médicos contavam com menos profissionais na rede pública de saúde em 2015. Além disso, um em cada três médicos integrantes trabalhava sem a supervisão necessária de acordo com as regras do programa. Ao analisar a cobertura de grandes veículos midiáticos é perceptível o tom crítico quanto à instalação do programa. Wilza Vieira Villela, doutora em Medicina Preventiva pela Universidade de São Paulo (USP),ressalta que uma das razões das críticas é a complexidade do programa.
Lanny acredita que profissionais brasileiros atenderiam melhor as demandas da rede pública. “Se o governo federal reestruturasse a formação médica no Brasil, criando mais centros de ensino e distribuindo os especialistas de acordo com as demandas de cada região, o sucesso seria maior. O Mais Médicos foi criado como um projeto a curto prazo”, esclarece.
Wilza concorda parcialmente com a biomédica. “Critico o privilégio que essa categoria de profissionais tem em termos de contratação, em detrimento do fortalecimento das redes e da incorporação de outros setores. Ao mesmo tempo, o programa deu oportunidade a um conjunto de pessoas que não tinham qualquer tipo de acesso à saúde. Como ele é bem amplo e tem componentes importantes de educação continuada, supervisão e formação profissional, existem chances de impactos interessantes serem produzidos na saúde da população a curto e médio prazo, em especial se as medidas de organização e regulação do sistema não forem negligenciadas”, reflete.
Profissionais preparados?
A médica também ressalta que não podemos generalizar a qualidade das graduações de medicina no Brasil. “Contamos com muitas escolas médicas, tanto públicas quanto privadas. As que mais acompanho são a USP, a Unifesp e a Unicamp, e elas estão sendo bem sucedidas ao formar profissionais aptos a trabalhar com competência nos diferentes níveis de atenção nos quais se distribuem os serviços do SUS”, afirma.
Limberger discorda. Ele argumenta que, enquanto estava na Universidade, 99% do que foi ensinado era voltado a um sistema curativo, que não é tão eficaz quanto o preventivo, e que uma mudança no SUS apenas ocorrerá se o cidadão souber, literalmente, de seus direitos. Não deve-se deixar o manuseamento de recursos apenas nas mãos de políticos. “Uma justiça de olhos abertos é necessária”, salienta.
Seriam esses “olhos abertos” os representantes da mídia? Para Wilza, não. Quando questionada sobre o aumento do número de planos de saúde no Brasil, responde que isso “é fruto de uma longa e lenta campanha de desqualificação do SUS e da desinformação da população sobre aspectos da saúde e qualidade de vida não relacionados à assistência médica”.
Fica a pergunta: até quando nossas atuais políticas de saúde terão condições de atentar à população? O futuro de nosso país é a privatização da saúde? Independentemente disso, o fato é que a situação atual deixa os habitantes sem mãos, pés e cabeça. Esse é o “estrangulamento” do sistema de saúde.