
Vale Tudo e a resistência de estereótipos por parte do brasileiro
- 23 de abril de 2025
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- Theillyson Lima
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O remake de Vale Tudo teve um aumento de 33% do público jovem na grande São Paulo em comparação com a novela antecessora, “Mania de Você”.
Késia Grigoletto
Desde o início da história humana, há um dilema que divide a sociedade em dois grupos. O primeiro grupo acredita que o ser humano vale o que ele tem e o segundo acredita que o valor do ser humano consiste naquilo que ele é. Ditados como “fulano não vale o que o gato enterra”, “ciclano não vale uma cibalena”, “beltrano não vale o que come” ou “você vale o que você tem”, são comuns e nada surpreendentes.
A novela para o brasileiro, sempre representou um reflexo social, moral e simbolizou as perplexidades vividas pelos seres humanos. Em 16 de maio de 1988, Gilberto Braga presenteou o país com uma história que na época ficou conhecida por retratar o brasileiro na sua mais pura e crua essência. Recentemente, mais precisamente no dia 31 de março deste ano, a novela ganhou um remake. As aberturas das duas versões da novela acontecem ao som de “Brasil”, composta por Cazuza e interpretada pela voz icônica de Gal Costa.
A trama principal da novela gira em torno da história de uma mãe e uma filha, que tentam vencer na vida de formas bem distintas. Raquel e Fátima simbolizam duas categorias em que a sociedade está dividida. A primeira é a dos que se esforçam, que querem vencer na vida com honestidade, sem passar por cima de ninguém e à base de muito trabalho duro. A outra, que tem Fátima por representante, é a dos que pretendem se dar bem a qualquer custo, que apreciam o dinheiro acima de qualquer coisa e que sem escrúpulo algum galgam lugares elevados pregando um merecimento que não lhes é devido.
Versões de Brasil
Na primeira versão da novela, Fátima, a filha, é interpretada por Glória Pires e Raquel, a mãe, por Regina Duarte, que na época já era conhecida como a namoradinha do Brasil. Uma das diferenças mais marcantes entre as duas versões, está justamente na mudança das atrizes. Na segunda versão da novela, a emissora fez questão de que as duas atrizes principais fossem pretas, ao passo que na versão de 1988, a única representação negra na novela, era a empregada de Bartolomeu (Cláudio Corrêa e Castro), interpretada pela atriz Zeni Pereira.
Um detalhe que parece irrelevante, mas que, enuncia uma sociedade muito mais racista do que atualmente. Sociedade essa que implicitamente, determinava o que o negro poderia ser e até aonde ele poderia chegar.
Ainda sobre as diferenças, Vale Tudo foi a primeira novela do Brasil a ter um casal homoafetivo. Na primeira versão, pode existir uma certa dificuldade em distinguir o casal, pois as personagens se parecem mais com duas amigas que dividem uma casa, do que com um casal em si. É provável que por receio da reação do público e dos impactos que poderiam ser causados com a mensagem. O remake retrata de maneira assumida e natural o casal homoafetivo, mas, evidencia que assim como em 1988, existem pessoas que sentem-se no direito de não aceitar as escolhas sexuais das outras.
Mesmo em um remake, mudanças são bem vindas e evoluções são esperadas. Algumas mudanças não acontecem porque aquele fato ainda é uma verdade e outras não acontecem por uma visão preconceituosa e dominante que insiste em resistir.
As duas versões da novela falam sobre a desvalorização do artista no Brasil e sobre uma super valoração atribuída à cultura norte-americana, com a figura do músico Rubinho, que com afinco defende a ideia de que no Brasil, ele não conquistou seu lugar ao sol porque o brasileiro não valoriza a arte. Para Rubinho, o sucesso só será possível em Nova Iorque, lugar em que seus sonhos se concretizarão.
O mais impressionante da situação, é que o artista nunca pisou em solo nova iorquino, contudo, descreve as ruas da Broadway com perfeição como se estivesse falando de sua própria casa. Rubinho personifica os inúmeros talentos perdidos e desvalorizados desse Brasil, representando de Patativa do Assaré à Tarsila do Amaral. A partir disso, alguns questionamentos podem ser suscitados: como o Brasil trata os seus artistas? Por qual razão a síndrome de vira-lata do brasileiro não sucumbe e dá espaço à cultura nacional?
A despeito de mudanças que não ocorrem por uma visão preconceituosa e dominante, que a sociedade insiste em impor como realidade, as duas versões da novela retratam a figura feminina por meio de Maria de Fátima, como se a mulher ainda insistisse e quisesse vencer na vida pelo casamento com um marido rico que banque seus caprichos e luxos, reforçando uma visão machista e limitada que é discutida ano após ano, e que apesar de todos os esforços, prevalece.
As duas interpretações da trama abordam o alcoolismo como pauta importante. Na primeira, a atriz Renata Sorrah interpreta Heleninha Roitman, ex-mulher de Marco Aurélio e uma das herdeiras da família oligárquica Almeida Roitman. Em sua atuação, Renata Sorrah se transporta para a personagem ao ponto de encarná-la com louvor, esse fator, torna difícil a dissociação entre a atriz e personagem.
Na segunda, a personagem é interpretada por Paolla Oliveira, contudo, ao contrário de Renata Sorrah, existe uma grande distância e até mesmo uma certa impessoalidade em Heleninha Roitman. Com a postura da atriz, uma das impressões possíveis para o telespectador, é que o alcoolismo talvez não seja mais tão relevante e palpável, no tocante à realidade.
O último ponto de diferença relevante é a aparência dos atores. Com o passar dos anos, as pessoas estão cada vez mais conservadas e jovens. Quando a namoradinha do Brasil, interpretou Raquel, ela tinha 41 anos de idade, já Taís Aráujo está com 46 anos. Regina na época aparentava ter a idade que tinha, possuía rugas e marcas de expressões que entregavam que a atriz não era mais uma jovenzinha, ao contrário de Taís que ao sorrir não possui uma única ruga na testa.
Isso também acontece no caso Renata Sorrah e Paolla Oliveira, as duas atrizes ao interpretar Heleninha, possuem 41 anos, entretanto, Renata parecia mais velha, o que talvez também tenha contribuído para a desenvoltura de seu papel, enquanto Paolla enaltece muito mais juventude. O mesmo se aplica ao contexto de Carolina Dieckmann e Cássia Kis com a personagem Leila, Cássia na época com 30 anos e Carolina no auge dos seus 46 anos. Carolina transparece ter os 30 anos de Cássia e Cássia os 46 de Carolina.
De todos os papéis, o mais impressionante, é o caso de Odete Roitman, que ao ser interpretada por Beatriz Segall em 1988, revelava uma senhora de 61 anos. Ao interpretar o mesmo papel, Débora Bloch com a mesma idade de Beatriz, exterioriza uma mulher na faixa dos 50 anos, ao invés de 61. Essa mudança significativa na aparência dos personagens pode gerar questionamentos como: será que esse rejuvenescimento ilustra e traduz a realidade da grande maioria da população do Brasil ? se esse rejuvenescer acontece com procedimentos estéticos, essa é uma realidade compatível com a vida do brasileiro comum?
Não há dúvidas de que as novelas são símbolos importantes para a cultura brasileira e sobre isso, há algo capaz de despertar um grande interesse. Por duas vezes o enredo da história descreveu o brasileiro como: desonesto, graduado e doutor em dar um “jeitinho”, sempre disposto a se dar bem às custas de outrem, sempre frisando que o interesse próprio está acima do bem comum e que esquisito é ser uma pessoa honesta, que evita a corrupção a qualquer custo. O Brasil de 1988 é o mesmo de 2025? A maioria da população brasileira é desonesta? A corrupção é parte indissociável da nossa cultura?
Se o remake de vale tudo vai entregar tanto quanto a primeira versão, não se pode ter certeza, porque ainda são poucos capítulos, contudo, uma coisa é certa: o elenco do remake é tão bom quanto o da versão original.
Vale Tudo ganhou um remake em comemoração aos 100 anos da Rede Globo. Não existe uma novela que conseguiu retratar o Brasil de maneira tão inteira e completa quanto a obra de Gilberto Braga. Vale Tudo é a tradução do brasileiro do Amapá e do Rio Grande do Sul que luta pela sobrevivência e que deseja passar pela vida, não apenas existindo, mas desejando fazer parte, ser quem ele quer e puder ser. A narrativa é atemporal e permite uma narrativa atual. Vale Tudo para recontar essa história.