No país do futebol, a bola protege abusadores
- 6 de novembro de 2024
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- Theillyson Lima
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O que os jogadores de futebol Cuca, Robinho e Daniel Alves têm em comum, e como a mídia lida com isso.
Victor Bernardo
O futebol é uma manifestação cultural, um elemento central para compreender o comportamento da sociedade brasileira. Mas, no país que mais o valoriza, o esporte mais popular do planeta não é receptivo a todos.
Durante a ditadura do Estado Novo, de Getúlio Vargas, o futebol feminino foi proibido pelo Conselho Nacional dos Desportos. Assim, muitas mulheres jogaram bola na clandestinidade até que a lei fosse revogada apenas quatro décadas depois. Chegamos à terceira década do novo milênio e algo parece ter mudado. A maior atleta da história da modalidade, Marta Vieira de Lima, é brasileira. Há poucos meses, a Seleção Feminina se destacava nos jogos olímpicos, levando a medalha de prata.
A realidade, no entanto, não reflete o idealizado topo da pirâmide. Para grande parte das mulheres, o futebol ainda é um ambiente pouco acolhedor, regido pela masculinidade, força e virilidade, no qual o “sexo frágil” não tem vez. Mais do que isso, o mundo da bola é ameaçador, como provam os casos de Cuca, Robinho, Daniel Alves e muitos outros.
Com uma anuência velada de seus pares, os boleiros se imaginam acima de qualquer julgamento, seja pela lei, pela mídia ou pela opinião pública. A impunidade, no entanto, parece ter seus dias contados.
Redes sociais e o pacto de defesa dos jogadores
Em 22 de fevereiro de 2024, Daniel Alves foi condenado a cumprir 4 anos e meio de prisão e pagar uma indenização de 150 mil euros por um estupro contra uma mulher de 23 anos, em dezembro de 2022, em uma casa noturna de Barcelona.
Em liberdade condicional desde março, o brasileiro decidiu voltar às redes sociais no início de outubro, e foi bem recebido. Sua primeira postagem foi endossada por diversos jogadores do futebol brasileiro e mundial.
Em 2023, Vinicius Júnior se manifestou em apoio ao lateral Benjamin Mendy, do Manchester City, que havia recebido nove acusações de estupro. Além do apoio do brasileiro – e outros jogadores – nas redes sociais, o francês revelou que recebeu até ajuda financeira de companheiros do City durante o julgamento.
Também no ano passado, o técnico Cuca – condenado na Suíça por estuprar uma garota de 13 anos – foi imensamente respaldado pelos jogadores do Corinthians, na passagem de dois jogos pelo clube. Além de manifestações em redes sociais, os atletas deram um abraço coletivo no técnico na comemoração de um gol sobre o Remo, em sua segunda e última partida pelo clube.
Grande parte dos jogadores da primeira prateleira do futebol não parecem ter problema em usar suas vozes para defender estupradores condenados.
O outro lado das redes
Em 2020, o Santos anunciou o retorno de Robinho ao clube. Revelado pelo Peixe e com outras três passagens pelo clube, o atacante assinou um contrato de cinco meses, com um salário simbólico de R$1.500,00 para disputar o fim do Campeonato Brasileiro.
O problema, no entanto, é que Robinho havia sido condenado a nove anos de prisão por violência sexual na Itália em 2017. Coincidência ou não, o jogador foi bastante elogiado – inclusive por seu “caráter maravilhoso” – por Cuca, à época treinador do Santos.
Nas redes sociais, a opinião geral da torcida foi bem diferente da perspectiva do treinador. Boa parte dos santistas se revoltou contra a diretoria pela contratação de um criminoso. Por conta disso, patrocinadores e conselheiros começaram a pressionar o Santos a respeito de um posicionamento sobre o caso (um dos parceiros chegou a romper o contrato com o clube). Menos de uma semana depois, Santos e Robinho anunciaram a suspensão do contrato.
As redes sociais se tornaram uma ferramenta importante na busca por respeito às vítimas de violência no mundo da bola. Em contraste com o posicionamento de jogadores, a opinião geral dos fãs de futebol parece caminhar para uma reprovação da presença desses personagens em seus clubes.
Outra prova disso é o próprio caso Cuca. Enquanto era abraçado pelos jogadores – literal e metaforicamente -, o treinador viu a torcida corintiana se posicionar em massa contra sua chegada. Não à toa, sua passagem pelo clube durou apenas dois jogos.
Quando retornou a um grande clube, em 2024, para lidar com a rejeição da torcida, Cuca precisou, ao menos, se posicionar de maneira contundente sobre a violência de gênero. Ele também se comprometeu a frequentar projetos educativos nesse sentido.
Mudança de chave
Talvez em um reflexo desse posicionamento por parte da torcida, a cobertura por parte da chamada mídia tradicional também tem mudado. Os três exemplos já mencionados refletem isso perfeitamente.
Em 1987, quando Cuca e outros três jogadores do Grêmio foram condenados na Suiça pelo estupro de uma adolescente, a imprensa brasleira tinha outras preocupações.
No dia 01 de agosto, a manhã seguinte à condenação, o Estadão deu destaque em sua capa ao conturbado período político e econômico vivido pelo Brasil, que estava na transição entre a ditadura e a redemocratização. No pequeno espaço dedicado ao esporte, o veículo preferiu destacar a situação do Corinthians no Paulistão a tratar de um crime cometido por quatro jogadores de uma das maiores equipes do país.
Assim como o Estadão, a Folha de S. Paulo ignorou o fato. O Globo, do Rio de Janeiro, foi o único grande veículo de imprensa a mencionar a condenação dos atletas, embora apenas numa pequena nota.
Mesmo com Cuca seguindo sua carreira de atleta e depois treinador, o crime só voltou à tona na imprensa brasileira em 2023, justamente com o posicionamento da torcida do Corinthians.
Em 2014, quando surgiu a primeira acusação a Robinho pelo crime que futuramente o condenaria a nove anos de prisão, já é possível perceber uma mudança. O caso foi bastante coberto pela imprensa, desde a acusação até a condenação.
Apesar disso, mesmo com Robinho atuando no Brasil, tudo caiu em esquecimento quando se constatou que o jogador não poderia ser preso (o Brasil não extradita seus cidadãos condenados em outros países). Apenas em 2020, com a contratação do atacante pelo Santos, é que se voltou a falar sobre o assunto.
Algum tempo depois, a condenação italiana foi validada pelo STJ, e Robinho começou a cumprir pena no Brasil. A imprensa também acompanhou de perto o desenrolar desse aspecto do caso.
Por fim, o caso Dani Alves demonstra ainda mais evolução na forma como o assunto é tratado. A imprensa não apenas cobriu o fato quase diariamente, mas vieram à tona diversas discussões pertinentes a respeito de impunidade, da proteção de jogadores a seus pares, da insegurança da mulher no meio do futebol e outros assuntos.
Com a maior presença de mulheres na cobertura esportiva, os debates sobre a violência de gênero no futebol ganham relevância, e cada novo episódio – como o de Cuca no Corinthians ou o assédio sofrido por Jeni Hermoso na final da Copa do Mundo – dá ainda mais força à discussão.
Daniel Alves e Robinho foram condenados. Cuca se aproveitou de uma tecnicalidade para se safar. Fosse hoje, provavelmente também estaria preso. Em comum, os três têm o fato de que, cedo ou tarde, tiveram seus crimes expostos. E tem sido cada vez mais cedo.
Com redações mais diversas e um posicionamento cada vez mais contundente da população, o jornalismo consegue ser a ferramenta de mudança que deve. Cumpre-se o principal papel social da mídia.