A absolvição midiática das celebridades
- 6 de novembro de 2024
- comments
- Theillyson Lima
- Posted in Debate
- 0
Em busca de audiência, a imprensa suaviza crimes de figuras públicas, confundindo o público e desviando a atenção das acusações. O fenômeno reforça privilégios e prejudica a confiança na mídia como pilar de imparcialidade e justiça.
Natália Goes
O jornalismo permeia a sociedade em diversos aspectos, desde o aumento do preço do azeite nos supermercados até as matérias mais mórbidas sobre crimes. Essas notícias acontecem a todo instante e, na ânsia pela manchete mais atrativa ou pelo furo de reportagem, os veículos de imprensa noticiam de maneira intensa crimes cometidos por figuras públicas.
Esse fenômeno traz consequências graves para o andamento do processo de qualquer acusado, famoso ou não. Mas, quando o acusado é uma celebridade ou uma figura pública com uma imagem positiva, a mídia frequentemente adota um tom de “absolvição” ou minimização, desviando o foco das acusações e promovendo uma narrativa em que o acusado é mais vítima do que culpado.
Fascínio da sociedade pelo crime
Há uma fascinação do público por crimes envolvendo figuras públicas, por diferentes razões. Primeiramente, a identificação com um ídolo é um fator poderoso. O famoso, por ser inspiração, é visto muitas vezes como herói, e a sociedade reluta em encarar a sua possível culpa. A segunda razão, é a curiosidade pelo lado sombrio desses indivíduos desperta o desejo de entender o comportamento do seu ídolo. Por fim, a mídia explora incessantemente os casos de grande repercussão, intensificando a curiosidade.
O jornalismo, com esse foco, deixa de cumprir sua função informativa e educativa, transformando-se em mero espetáculo, influenciando a opinião pública e, muitas vezes, desestabilizando a busca pela justiça. Cabe à imprensa uma responsabilidade ética, especialmente na cobertura de crimes.
O princípio da presunção de inocência
Essa responsabilidade e poder designada nas mãos da mídia é levada de forma importante por parte dos veículos. Ao indivíduo cometer um crime, a mídia é o principal canal em informar a população sobre o ocorrido.
Porém, os profissionais de comunicação não são juízes e não podem ditar o que é verdade ou não sobre os casos envolvendo qualquer indivíduo da sociedade seja ele famoso ou não. A mídia não pode e nem deve manipular as pessoas, pois isso seria uma ameaça à democracia e ao devido processo legal, trâmite necessário no processo penal.
O princípio da presunção de inocência, baseado no art. 5º, inciso LVII da Constituição Federal revela que ninguém será condenado ou culpado ou tratado como tal até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Aqui se faz necessária a lembrança da importância da Declaração Universal dos Direitos Humanos, no art. 11 no qual prevê que “todo ser humano acusado de ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei”.
Entretanto, respeitar a presunção de inocência não significa inocentar ou romantizar, deliberadamente, figuras públicas acusadas de crimes. O jornalismo deveria ser imparcial e oferecer a verdade dos fatos sem manipulações emocionais que pintem o acusado sob uma luz de simpatia.
Caso do ex-goleiro
Um dos casos de grande repercussão em que a mídia absolveu uma pessoa pública por determinado tempo foi o do ex-goleiro Bruno Fernandes. Em junho de 2010, um ano após o anúncio da gravidez, Eliza Samudio foi considerada desaparecida. O último relato sobre o paradeiro dela indicava para o sítio de Bruno, em Minas Gerais.
Mesmo com as especulações, no início a mídia retratava Bruno como um homem preocupado com o desaparecimento de Samudio. Além disso, deu espaço para que o advogado do ex-goleiro colocasse a vítima como a vilã. Na época, ele fez declarações à imprensa, dizendo que “Eliza era prostituta, atriz de filme pornô, sem caráter e chantagista”.
O ex-goleiro só foi tratado como acusado ou suspeito principal de ter cometido o crime após uma das testemunhas afirmar que ele tinha ciência do que aconteceria com Eliza. As versões nunca foram totalmente provadas, uma vez que a polícia nunca conseguiu encontrar os restos mortais da atriz.
Apesar da polícia não ter encontrado o corpo ou os restos mortais de Eliza, Bruno foi condenado pelo assassinato por 22 anos. Mesmo condenado, a mídia ainda continuou “absolvendo” do crime, tratando-o não como assassino, mas como se a Eliza tivesse apenas sumido, ido embora sem se despedir.
Caso Cuca
Outro caso marcante é do ex- jogador Alexi Stival, o Cuca, ex treinador do Corinthians. Ele e mais dois jogadores foram detidos na Suíça e passaram cerca de um mês na prisão, saindo mediante pagamento de fiança. A prisão ocorreu depois de uma adolescente alegar que teria sido abusada sexualmente pelos jogadores.
Ao retornarem ao Brasil, os jogadores foram “absolvidos” pela imprensa. O jornal Zero Hora, no Caderno de Esportes, retratou a volta dos jogadores a “uma chegada emocionante”, transformando-os como vítimas e tornando a verdadeira vítima como vilã.
Na época, os jogadores foram condenados a 15 meses de prisão e multa. Nenhum deles cumpriu a pena, pois não estavam na Suíça durante o julgamento e nunca mais retornaram ao país.
O imaginário
Essa benevolência da mídia ao tratar celebridades acusadas de crimes prejudica não só a opinião pública, mas o próprio conceito de justiça. Ao “absolver” celebridades em suas manchetes, o jornalismo alimenta a noção de que aqueles que possuem notoriedade ou fortuna são tratados de forma diferente pela sociedade e pela lei.
A imprensa, como pilar da democracia, tem o dever de cobrir os fatos com responsabilidade e imparcialidade, assegurando que o público possa ter uma compreensão realista e equilibrada dos acontecimentos. O tratamento seletivo e tolerante para com figuras públicas enfraquece a confiança nos veículos e amplia a sensação de impunidade, fomentando uma sociedade que legitima privilégios.