Jornalismo Esportivo: Mulher com M maiúsculo
- 30 de agosto de 2023
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- Theillyson Lima
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Após ter ido ao espaço, assumido a presidência e ganhado um Nobel, a mulher ainda precisa lutar por um lugar dentro do esporte.
Ana Toyota
Uma profissão em que mulheres precisam de muita força de vontade para se manterem no ramo. Problemas como piso salarial e dificuldade para alcançar o sucesso na carreira, são apenas a ponta do iceberg frente ao preconceito. Na televisão, a visão da mulher é estereotipada, seguindo a linha de que no jornalismo a figura feminina precisa ser atraente, e muitas vezes sensualizada. Fora isso, a profissional não é levada a sério, vista como alguém que sabe menos, não domina assuntos de esporte e precisa manter seu lugar no jornalismo como “garota do tempo”.
Segundo pesquisa do UOL, apenas 13% das pessoas que aparecem nas telas são mulheres, e a grande maioria em reportagens. A presença feminina como apresentadora principal parece se manter no caráter experimental. Se na produção técnica da televisão, o preconceito é estrutural e pouco falado, em campo ele é escancarado. Relatos de ameaças dentro e fora do Brasil, assustam. A imagem da mulher dentro do campo é deturpada, logo a esperança de um ambiente saudável de trabalho é quase inexistente.
“Tenho medo de trabalhar em jogos de futebol”
Em uma reportagem realizada pelo UOL sobre jornalistas que cobriam eventos esportivos, vários foram os relatos de profissionais que enfrentavam a violência no dia a dia dentro do gramado. “Cheguei a temer que os torcedores arrebentassem a grade para me agredir”, conta Mayra Siqueira, repórter da Rádio Globo/CBN e comentarista do SporTV.
Segundo uma pesquisa realizada pela jornalista Renata Cardoso Nassar em seu trabalho de conclusão de curso (TCC) na UFJF, cerca de 96,55% das profissionais entrevistadas afirmam que a discriminação dentro da profissão existe. Do total, 86,65% contam já terem sofrido algum tipo de preconceito dentro da carreira, sendo o assédio o principal tipo de constrangimento (38,46%).
O mais assustador é quando a agressão deixa de ser ameaça. Em 2021, no jogo do Altos contra o Fluminense do Piauí, a jornalista Emanuelle Madeira, que trabalhava para a TV Clube, filiada da Globo, foi agredida por um homem com a camiseta do time Altos. O torcedor agrediu a jornalista no braço, arrancou o celular da mão dela e agarrou seu pescoço.
O medo passa a ser rotina
A partir da figura de violência vivida pelas jornalistas no meio esportivo, é natural buscar meios para sobreviver dentro da rotina. Quando somos colocados em uma situação ruim, é tendencioso se acostumar com aquilo, às vezes porque é preciso ou pela falta de esperança da mudança. Acostumar-se com o ruim faz com que o ser humano encontre soluções para enfrentar de maneira passiva, até que a dor pareça ser suportável, basicamente a rotina do medo.
“Eu sempre trabalhei com um lado só do fone de ouvido nas transmissões. Por uma questão técnica fico com um ouvido na transmissão e outro no ambiente do estádio. Porém, de uns tempos para cá, parei. Coloco o retorno nos dois ouvidos, no último volume. Não sei mais o que falam e se falam”, conta.
O relato foi dado em entrevista ao UOL e é da jornalista Ana Thais Matos, repórter da Rádio Globo/CBN e comentarista do SporTV. Ela conta sua experiência dentro do esporte e a maneira que ela conciliava seu estado mental com o dever que o trabalho lhe oferecia. “Eu não fico próxima a essas pessoas, apenas passava por eles. Teve uma vez que eu fiquei muito nervosa. O sujeito gritou meu nome e disse que ia me encontrar na rua e me estuprar. Não por acreditar que ele faria isso, mas fiquei uns 30 minutos pensando que eu estava no meio de alguns animais. Minha pressão subiu, meu coração disparou, mas fiz a transmissão normalmente”, assim ela relata.
“Quem é você?”
Não apenas nos gramados. A jornalista esportiva Mariana Becker, repórter da Fórmula 1, foi alvo de comentários debochando do seu trabalho. No último GP da Áustria, na temporada de 2023, Mariana se dirige ao piloto Lando Norris, da McLaren, e emite uma pergunta. O piloto responde “você faz as melhores perguntas por aqui”, imediatamente um colega de imprensa debocha da jornalista dizendo à Lando: “você é um mentiroso”. O piloto defende Mariana ao perguntar “quem é você?”, e deixa claro à jornalista que seu comentário foi sincero.
Mariana Becker é uma jornalista brasileira formada na PUC em Porto Alegre. Possui quase 30 anos de carreira, sendo 16 de Fórmula 1, fazendo com que não só o trabalho seja reconhecido, mas também criando amizade com os pilotos e a admiração de profissionais que desejam chegar aonde Mariana chegou. O episódio que ocorreu com uma jornalista que possui quase 30 anos de trabalho e prestígio, mostra que o desrespeito na profissão não diz sobre experiência de trabalho ou construção de carreira, o preconceito diz sobre quem ela é. Mariana é uma mulher.
Mulher no esporte é heroísmo
Viver uma realidade em que a violência é rotina, o salário é desigual e as dificuldades são inúmeras não é para qualquer um. Com o início da união de várias mulheres no esporte, nasceu em 2018 o #DeixaElaTrabalhar. A iniciativa começou com 52 jornalistas que exigiam direitos básicos de qualquer profissional dentro do esporte. Ela se concretizou como uma luta contra o assédio moral e sexual.
A movimentação veio através de um vídeo manifesto realizado pelas próprias mulheres que trabalhavam na cobertura esportiva como repórteres, apresentadoras, produtoras e assessoras de diversos veículos e emissoras. O vídeo foi repostado por diversos times e clubes e trouxe a tona a hashtag #DeixaElaTrabalhar, mostrando à mídia a problemática enfrentada pelas mulheres dentro da profissão.
Apesar da movimentação em favor da mudança, a esperança, se não é inexistente, parece ser uma realidade muito distante. A jornalista esportiva da Globo Gabriela Moreira fala ao UOL sobre como ela enxerga essa mudança dentro do esporte profissional. Ela diz: “A sociedade pensa dessa forma, claro que vão achar que sou culpada por ser xingada. Vão achar que sou culpada por ter provocado a ira de torcedores, por ter sido insultada, vai demorar muito a mudar. Não vejo [a mudança] na minha geração, quem sabe em uma ou duas gerações isso mude”.
Uma profissão em que ser mulher é um ato heroico. Essa frase foi dita por Maíra Liguori, jornalista e ativista pelos direitos das mulheres. “Ser uma mulher neste meio é um ato de heroísmo. Uma repórter mulher neste meio é tão raro que a mera presença delas já se torna um ato político. Temos mulheres qualificadas? Com certeza. Elas conseguem ser promovidas e lançadas a estas posições? Não.” No entanto, ela afirma que com o esforço da mudança já existe um desejo de ouvir a voz feminina no futebol, é uma cultura que precisa ser transformada, e que aos poucos traz o lugar que a mulher merece, não apenas no esporte, mas em qualquer ambiente profissional que ela é inserida. Mulher no esporte é uma heroína.