A mistura é completa
- 29 de março de 2023
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- Theillyson Lima
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Um país como o Brasil, com tanta diversidade, origens e ancestralidade, não poderia fugir da mistura de cores.
Lana Bianchessi
Você já conheceu alguém de pele bem escura que se declarava parda e outra com a pele mais clara que também falava se identificar com a cor parda? Isso é bem comum de se ouvir, na verdade. Pardo é uma pessoa com diferentes ascendências étnicas e que são baseadas numa mistura de cores de pele entre brancos, negros e indígenas. Ou seja, uma pessoa parda é aquela que possui descendentes de negros e brancos, negros e indígenas, indígenas e brancos e outras possíveis combinações parentais.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pardo é um entre cinco grupos de “cor ou raça” que fazem parte da população brasileira, junto com brancos, pretos, amarelos e indígenas. O manual do IBGE então define o pardo como uma mistura de cores de pele. Mas o que faz alguém ser caracterizado como pardo?
Cores ou ascendência?
No Brasil, no entanto, poucas pessoas se baseiam no genótipo, isto é, a composição genética herdada pelos pais. Muitos associam ao fenótipo: o conjunto de traços observáveis ou não de um indivíduo. Então, por mais que os pais de alguém sejam de duas raças diferentes, pode acontecer que a pessoa se considere parda pela cor da pele.
A maneira que o IBGE classifica essa raça se baseia apenas no genótipo. Isso limita bastante a identificação de pessoas pardas, ainda que 98 milhões de brasileiros sejam considerados pardos de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2019, totalizando 46,8% da população.
No quesito de identificação, a pessoa parda não necessariamente observa as cores dos pais para se julgar como parda. Afinal, colocar a pessoa na categoria de raça de um dos pais desvalida o que a pessoa se identifica de fato. Dito isto, imagine que o indivíduo tem a pele mais clara que a mãe, sendo que ela é negra. Ele pode visitar e conviver com os parentes maternos e não se enxergar como negro, por mais que se identifique e abrace a cultura em torno da raça negra. Da mesma maneira, ele tem uma cor mais escura do que seu pai branco, e por isso não se identifica também com a cor quando se convive com a família paterna. Confuso? Não deve ser.
Pode ser que alguém não queira ser chamado de negro, já que a pessoa parda sofre racismo de maneira diferente que alguém de pele negra retinta. Isso seria como invisibilizar a cor da mãe seguindo o exemplo anterior. Mas também pode não se identificar como branco por motivos semelhantes. Por isso, surge uma nova categoria de cor para que a pessoa se sinta mais representada e validada, coexistindo com as duas convivências e culturas parentais.
Contexto histórico
O Brasil foi colonizado de maneira diferente comparado aos demais países das Américas, sem muitas políticas sobre casais interraciais, embora a relação entre pessoas de cores diferentes não fosse bem vista. Com uma política escravista que contribuiu para estupros e violências sexuais de escravos por donos de terras, a miscigenação foi fortalecida. Mesmo após a escravidão ser abolida, a elite branca europeia ainda se sentia no direito de ser dona dos corpos negros e indígenas.
Mesmo que não exista nenhum registro escrito dessa violência, sabemos que ela existiu por relatos orais, além de aspectos da escravidão e violência fisica, é irreal pensar que não existiu também a violência sexual.
Outro ponto do porquê a miscigenação aconteceu de forma diferente aqui, foi o anseio racista da população vinda da Europa de tornar todos brancos, ou conviver em um país com muitas pessoas brancas. Com isso em vista, as autoridades europeias criaram a política do embranquecimento no século XX. Era um projeto com o objetivo de fazer com que a população do país se tornasse branca, fazendo existir contato sexual entre brancos e povos originários e negros, consensual ou não.
Essa iniciativa trouxe muitos imigrantes da Europa para o Brasil com essa meta em mente: fazer a população se tornar o máximo parecida com o branco. Em vez de embranquecer, as raças se misturaram e criaram outra categoria, chamada de pardo. Isso nos trouxe a miscigenação que temos hoje em dia com várias tonalidades, biotipos e fenótipos diferentes.
Naquela época, esses filhos de pais interraciais ainda estavam sendo considerados uma iniciativa de mudança de raças. Portanto, não eram bem aceitos como negros ou indígenas, mas também ainda não estavam bem aceitos na sociedade branca europeia. Ainda mais com o racismo cruelmente presente, era mais benéfico para um pardo ser considerado o mais longe possível da cultura não branca, por isso foi sendo criado esse afastamento de identificação com a cor negra ou indígena.
Enquanto os filhos não eram aceitos como totalmente brancos e não queriam ser vistos como negros ou indigenas, foi necessário criar uma nova categoria onde eles se sentissem acolhidos por pessoas com tonalidades de cores parecidas.
Mestiçagem
A mestiçagem e miscigenação significa a mistura de elementos diferentes, como etnias, religiões, arte, e que vão originar um terceiro elemento. François Laplantine era um antropólogo que escreveu sobre a mestiçagem e outras questões sociais. Em seu livro “A Mestiçagem”, em conjunto com o linguista Alexis Nouss, ele conta o conceito de mestiço, que seria a fusão de dois elementos que anteriormente estariam em estado de “pureza”.
A mestiçagem, segundo ele, é “uma composição cujos componentes guardam a sua integridade”. O que nos faz pensar que o pardo, sendo alguém “mestiço”, seria a soma das duas cores, carregando aspectos genótipos e culturais das duas raças e não somente fenótipo. O pardo, então, carrega as duas raças no sangue, mas não necessariamente no seu tom de pele. Ainda assim, ele é completo.
Para você ter uma ideia da coloração de peles e como elas se apresentam de formas diferentes na pessoa parda, tente se lembrar do famoso escritor brasileiro Machado de Assis. Você lembra se ele era branco, pardo ou negro?
Ele era filho de um pintor e de uma lavadeira negra, escreveu obras muito conhecidas como “Dom Casmurro” e “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, além de inúmeros poemas, contos e crônicas. A genialidade de suas obras é inegável, no entanto, sua imagem foi embranquecida com o passar dos anos.
Observe as fotos que estão na capa dessa matéria. Olhando esses retratos, você diria que Machado de Assis era branco, negro ou pardo?
As duas fotos são da mesma pessoa, mas com cores de pele diferentes. Sua imagem histórica foi alterada com truques de luz e sombra para suavizar seus traços, justamente por viver em uma época em que pessoas pardas tentavam se afastar do racismo, negando seu tom de pele mais escuro que o de uma pessoa branca.
A mistura é essencial
A mistura de cores e raças está presente em todo o Brasil, mesmo que o surgimento dessa miscigenação não tenha sido de forma voluntária, sem invasões, genocídios e violências. A lembrança cultural dos povos está sendo carregada em todos os indivíduos que se consideram pardos.
Pardo não deveria ser visto somente como uma raça, mas como a validação de uma mistura de raças que, juntas, se tornam algo mais significativo e com uma gama de culturas maior. Mesmo que o fenótipo seja diferente dos dois parentescos, é igual aos dois. Uma soma de dois elementos que não perdem a sua essência.