Um termo mais do que insuficiente
- 29 de março de 2023
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- Theillyson Lima
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O pardo simplesmente não serve para definir quem são os brasileiros
Lucas Pazzaglini
“A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura”. Assim começou a história do “pardo” no Brasil, logo em 1500 com a carta de Pero Vaz de Caminha, que, ao pisar em terras prestes a serem exploradas, escolheu classificar os povos originários dessa forma. O termo ganhou força e serviu como estereótipo do indígena por muitos anos, mas depois ele assumiu outra função: a de classificar aquele que não era nem “tão branco” e nem “tão preto”.
Se engana quem pensa que este foi o último significado atribuído à categoria. Na tentativa de enquadrar a maioria dos povos e etnias em uma classificação única, o pardo se tornou “a terceira via” das raças, uma vez que, segundo o IBGE, pardo é todo aquele que tem origem mestiça, ou seja, é a junção de etnias diferentes.
Conhecendo a história do Brasil, é fácil perceber que essa definição tão ampla pode significar que todo e qualquer brasileiro é pardo. É difícil pegar uma árvore genealógica e dissecá-la até o momento da colonização para saber se você é proveniente de uma “raça pura”. Ainda assim, nem todo brasileiro é pardo, e essa afirmação pode até fazer com que questionemos a funcionalidade do termo.
A discordância do pardo
Exploremos então o porquê do pardo não fazer sentido dentro de sua própria classificação. Como já dito, para o IBGE, pardo é todo aquele que tem uma origem mestiça, mas ele assume apenas o papel de cor, e não de raça ou etnia, ao contrário das outras classificações oferecidas pelo órgão (branco, negro, amarelo e indígena).
O pardo não tem uma cultura específica para preservar, não tem uma história específica e, muitas vezes, nem sabe por que é pardo; apenas se acostumou à nomenclatura. Se pararmos para observar a fundo, é até estranho que essa “cor” esteja na mesma categoria que essas raças e etnias, uma vez que ela assume um papel diferente e não carrega a mesma bagagem.
Esse é apenas um dos pontos de colisão. Existem diversas explicações para o termo e cada uma diverge mais da outra. Para alguns, ele pertence ao grupo dos negros, que seria formado por pretos e pardos; para outros, ele engloba os descendentes de indígenas. A explicação mais interessante é de que o pardo “é uma categoria residual”, ou seja, o que sobrou de alguma raça e que apresenta um mínimo traço característico: nesse caso, a cor.
Talvez essa explicação resolvesse o problema se não existisse um questionamento maior. Quando o IBGE assume que todos os que foram gerados a partir de miscigenação são pardos, ele não fala apenas da junção de pretos, brancos e indígenas, o leque abre para asiáticos, árabes, indianos, latino-americanos (fora brasileiros) e as misturas que essas e outras etnias promovem.
Se o pardo é visto como cor – “nem tão branco, nem tão preto” -, mas engloba todas as misturas étnicas possíveis, seu papel é anulado. Nem sempre quem nasce a partir de miscigenações vai apresentar o “resíduo de cor” esperado. Nesse caso, pode se autodeclarar de outra forma (como branca, negra, amarela ou indígena), tornando “pardo” uma categoria sem efeito prático.
Brasil de todas as cores?
O passado do termo “pardo” é cheio de complicações. Primeiro, porque fez parte de uma das muitas “fórmulas” de branqueamento inseridas no Brasil, um processo que começou desde a colonização, quando mais de 5 milhões de europeus vieram para o país com um propósito “claro”: embranquecer a população originalmente indígena. O interessante é que foi esse movimento que deu origem aos pardos.
Isso parece muito distante, então, avancemos alguns anos, já para o século 19, quando o “Pai dos Pobres” assumiu o cargo de presidente em 1934. Getúlio Vargas tinha uma política racial um tanto quanto intrigante, mas não surpreendente. Era a mesma do Brasil Colonial: quanto mais branco, melhor.
Com esse propósito, Vargas passou a proibir a entrada de imigrantes no Brasil, assegurou, através da Constituição, a educação eugênica nas escolas e voltou a usar o termo pardo, que tinha sido substituído por mestiço anos atrás.
Quando colocado em perspectiva, o uso do nome parece ser o menor dos males dentro das políticas discriminatórias, mas tirar o nome é como arrancar parte de uma identidade. Prova clara disso são os indígenas que tiveram o nome de suas comunidades esquecidas e jogadas em um mesmo saco. Esse processo doloroso faz parte de uma trajetória de colonização. Quando não se ataca o físico de forma veemente, pois a mão de obra é necessária, a mente é desestabilizada.
O termo mestiço, usado anteriormente ao governo Vargas, já generalizava demais as raças, mas ao menos carregava uma história. Se sou mestiço, significa que venho de uma mistura de raças e que pertenço a várias culturas. Agora, quando o termo pardo toma conta do país, a mensagem a ser passada é simples: “nós podemos não ter tantos brancos ainda, mas também não temos tantos pretos, porque nós temos mais pardos”.
A política deu tão certo a longo prazo que, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2021, 43,0% dos brasileiros se declaram como brancos, 47,0% como pardos e 9,1% como pretos. Dependendo da sua realidade, essa estatística pode ser encarada com desconfiança, já que deve ver muito mais pretos do que brancos nas ruas. No entanto, devido a tantas políticas históricas discriminatórias e pouca educação racial, há quem seja indígena, negro ou amarelo mas que prefira se autodeclarar como pardo.
A negação da origem
A categoria parda pode facilmente limitar toda uma existência, afinal, não carrega nenhuma herança cultural específica. Muitas pessoas sabem que tem ascendência negra, indígena, europeia etc., mas se conformaram em serem “pardas”. Sem saber da sua própria história, há quem acredite que a luta dos outros não é a sua.
Nosso passado deplorável e presente vergonhoso facilita acreditar que negar sua própria origem é melhor do que assumir riscos e problemas, de propósito, simplesmente por sua ascendência. A historicidade do termo representa um momento odioso do nosso país que, sendo tão miscigenado e diverso, ainda obriga pessoas a esconderem suas origens em busca de segurança – por mais que seja apenas interna.
A origem faz muita diferença. Saber de onde você veio te ensina sobre quem você é. Ser classificado apenas como pardo não te dá bagagem cultural. Você pode ser descendente de qualquer um e ter qualquer herança genética. É importante que, ao se entender como pardo, também seja compreendido que isso não é o suficiente, pois essa não é toda sua definição. Se existe a ascendência indígena, negra, branca, amarela, então que essa herança seja buscada.
Em busca de diversidade
É impossível dizer que o pardo não existe, quando a maior parte do Brasil se autodeclara dessa forma, mas é plausível dizer que ele existe de forma errada, por ser herança de um processo discriminatório e racista. A nomenclatura não é suficiente. Exigir novas formas de classificação racial promove a manutenção das nossas culturas ancestrais. Queremos que elas não sejam esquecidas e sim preservadas.
Comecei esse texto com a fala de um português, colonizador, europeu, que mudou a forma de enxergar um número vasto de etnias indígenas. É justo terminá-lo com o pensamento das vítimas desse processo de branqueamento, colonização e extermínio. Em entrevista ao portal Ecoa UOL, Trudruá Dorrico, indigena do povo Macuxi, resume esse texto inteiro de forma simples e autoexplicativa: “A categoria pardo é uma associação colonial que buscou generalizar a diversidade de povos existentes no que hoje chamamos Brasil”.