Terra do sol poente: racismo recreativo e risadas por obrigação
- 29 de março de 2023
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- Theillyson Lima
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Quando é em tom de piada, não vou ser eu que vou cortar a graça!
Ana Toyota
“Abre o olho”, “pastel de flango”, “made in China”, “volta pro seu país”. Chega a ser tão inofensivo que mesmo o motivo da piada também se sente na obrigação de rir. Piadas que se você nunca disse, provavelmente conhece alguém que já falou. São tão comuns e repetitivas que não faz sentido algum ainda terem graça.
O racismo recreativo é um meio que utiliza o humor a fim de estereotipar grupos minoritários não-brancos (amarelos, negros, indígenas, etc), reduzindo o grupo a uns poucos comportamentos esperados. Essa análise em forma de relato, tem como objetivo discursar sobre o racismo contra pessoas amarelas, recorrendo a um de seus principais instrumentos: o humor.
Me deixa abrir seus olhos
Desde criança a gente aprende a responder por “japa”, já que é um apelido carinhoso que os amigos nos dão. Eu mesma achava um máximo porque onde eu estudava eu era a única. Única na escola, na igreja, nas pracinhas e nas rodas de amigos, ninguém era “japa”, e isso era só meu. Com o tempo, fui crescendo, meus irmãos mais novos começaram a frequentar a escola junto comigo e o meu “japa” também era deles. Soube então que o apelido carinhoso no fim das contas era de qualquer um com os olhos pequenos, quanto carinho!
De tanto amor, resolvi que queria ter identidade, como pessoas de descendência japonesa tem os sobrenomes lindos (Hideki, Hakamada, Caname, Guenji), eu queria ser chamada de Toyota! Porque assim eu continuaria única… Único alvo de piadas sem graça, pois foi quando meu perfil do Facebook saiu de “Ana Beatriz Silvério” para “Ana Beatriz Toyota” recebi a primeira “com que idade um japa abre a pastelaria de flango?” e senti vergonha.
O japa da USP foi fazer jornalismo na particular
A cobrança acadêmica é quase que uma marca do asiático (olha os estereótipos). Já ouvi frases como, “para passar na federal você precisa matar um japonês” ou que “lugar de japonês é na USP”, e não apenas isso, ele precisava cursar um dos cursos “plus premium” eleitos pela sociedade, sendo eles, os top 3: medicina, direito e alguma engenharia (pode ser qualquer uma desde que seja engenharia!), se não você não é um bom asiático!
A questão da escola sempre me chateou muito porque eu nunca fui a melhor aluna da classe (quebrando padrões, uhul). Não que eu era ruim, mas o segundo lugar me consumia, a ponto de eu não me achar inteligente só por não ser aquilo que esperassem que eu fosse. No último ano do colégio a expectativa era que eu fosse fazer Medicina na federal, mas o choque veio quando eu disse que queria fazer Jornalismo! Tão inteligente… Por que alguém de olhos puxados faria comunicação? Você já viu algum descendente de asiáticos apresentando um jornal? Já viu algum jornalista notável de olhos puxados? Não né.
Então, se eu não fosse fazer medicina, era quase obrigatório que eu passasse na USP. No fim de semana do vestibular da FUVEST já estava tudo pronto: caneta, papel, declaração de participante do vestibular e o coração a mil. No sábado, dia antes da prova que direcionaria a minha vida, eu decidi que não iria fazer a prova (isso mesmo), afinal, se eu não prestasse o vestibular eu não teria a vergonha de dizer que não passei, e no fim das contas… Meu pai não ia querer a filha dele morando no perigo da grande São Paulo né, assim pensei.
Eu fui uma das poucas pessoas da minha turma que não prestou FUVEST, e fui com coragem (ou covardia) só com a minha nota do Enem. Pelo Sisu, passei na federal, mas o resultado chegou quando eu já estava no UNASP fazendo Jornalismo, faculdade que entrei com a segurança de que não me rejeitaria, e não rejeitou mesmo.
A história das vaginas horizontais do oriente
O preconceito em forma de sexualização é um assunto delicado em qualquer etnia. Ainda mais quando destinado a uma criança. Aos meninos a zoação vem de um estereótipo de que o garoto asiático é nerd, centrado, típico aluno de “federal” e que na sua intimidade não tem muito a oferecer. Os termos de baixo calão não valem a pena serem citados (mas eu tenho certeza que você já sabe a piada em questão).
A menina asiática veste o estereótipo de garota dócil, submissa e principalmente exótica. E por eu ser a “exótica”, sempre nutri o pensamento de que a minha beleza era desejável “apenas” por quem possuía o fetiche, o resto fazia piadas (o que para mim já era natural) ou perguntas desconfortáveis. Esse sentimento surgiu durante a minha adolescência, após encarar muitos “fãs” de anime e dorama que vinham com o discurso, “eu tenho preferência por mulheres japonesas”, “sou fã da beleza asiática”, “me interesso muito pela cultura japonesa”, tudo isso como (adivinha) flerte!
Fora do flerte e da “conquista” o mundo fica bem pior, a intimidade é exposta através de perguntas extremamente desconfortáveis que seguem com uma explicação sem fundamento. Eu me lembro de cada vez que me fizeram querer ser alguém diferente. Quando eu tinha 13 anos, um menino mais velho me perguntou se a vagina da mulher asiática era na horizontal, porque “historicamente” ele havia ouvido falar que isso era real.
Essa história das vaginas horizontais do oriente é antiga. Ninguém sabe ao certo como o mito surgiu, mas o primeiro caso histórico, foi em 1816, quando George Cuvier, um naturalista francês, teorizou que a vagina de mulheres chinesas provavelmente seria na horizontal. Em 1880 isso foi desmistificado pelo cientista JW Buel, que realizou uma pesquisa com mulheres chinesas (sim, ele pesquisou elas) que viviam em Chinatown e constatou que elas eram (PASMEM) anatomicamente normais (surpresa!).
O boato só se espalhou de fato quando norte-americanos foram à Ásia na Segunda Guerra Mundial e na Guerra da Coreia. Durante esses dois conflitos muitos soldados tinham encontros com mulheres asiáticas (raramente consensuais) e ao voltarem à América espalhavam boatos de que as vaginas eram na horizontal com o objetivo de se gabarem pela “exoticidade”.
Terra do sol poente
O sentimento de não pertencimento é um dos piores tipos de isolamento. A crítica do texto não é contra o humor (antes que me chamem de “estraga piada”), é contra a solidão. A solidão de quem frequenta lugares e é diferenciado pelas outras pessoas por causa do olhar, é entrar em uma roda e ter certeza que vai ouvir a mesma piada inúmeras vezes sem a perspectiva que um dia vá parar. É de se sentir sozinha por ninguém entender, e te chamarem de chata se você não rir de volta, afinal, ninguém quer ser o “chato” da roda.
No final das contas, o racismo recreativo entretém a quem? O entusiasmo da zombaria faz a roda inteira rir, mas será que no coração todo mundo se sentiu feliz? Porque o mesmo grupo que olha para mim e não consegue conter a piada, quando finalmente me observa com seriedade diz que eu sou branca. O não pertencimento dói, a solidão machuca. Se o Japão é terra do sol nascente, a escuridão de onde estou me faz pensar que o sol se pôs a muito tempo.