Mixed race e as pequenas – e grandes – violências
- 29 de março de 2023
- comments
- Theillyson Lima
- Posted in Análises
- 0
Além do racismo escancarado, pessoas mixed ainda precisam lidar com questionamentos e julgamentos acerca de sua ancestralidade.
Helena Cardoso
Cada país possui sua própria cultura. Por causa disso, existem divergências de pensamento sobre um mesmo assunto em países diferentes. Essas diferenças entre culturas podem ser tão discrepantes a ponto de afetarem o conceito de raça.
A atriz Talia Jackson (foto) é o exemplo ideal para analisar como pessoas mixed – mistas ou miscigenadas, em português – são vistas de acordo com o país. Para começar, essa definição, de acordo com o dicionário Oxford, significa “pessoa que tem os pais ou ancestrais de diferentes raças ou etnias”. Nesse sentido, uma pessoa pode ser mixed se seu pai for branco e sua mãe negra, ou se sua avó for indígena e seu avô asiático, por exemplo. O termo mixed é utilizado em países anglófonos, como os Estados Unidos.
Já no Brasil, sua ancestralidade não é indicativo da sua raça. Aqui, a definição de pessoas é de acordo com a cor de sua pele e outras características físicas. Por isso, pode-se dizer que enquanto em nosso país a raça é uma questão fenotípica, enquanto nos Estados Unidos ela está mais relacionada ao genótipo. Dessa forma, enquanto Talia é vista como negra lá, no Brasil, grande parte das pessoas a considera branca.
Racismo escancarado e velado
A atriz interpretou a personagem Jade McKellan na série Reunião de Família, da Netflix. A sitcom mostra o cotidiano dos McKellan, que se mudam para a casa de Amelia M’Dear (a avó) após Moz (o pai) se aposentar. A série trata bastante sobre racismo, principalmente porque todos os membros da família passam por isso. Em vários episódios, é possível perceber ainda a discriminação direcionada a Jade, filha de Moz, justamente por ela ser mixed – e alguns comentários vêm da própria família.
Mas como é, na vida real, o racismo direcionado às pessoas mixed race? Em 2015, a Pew Research mostrou que 55% dessas pessoas afirmaram que já estiveram sujeitas a piadas e xingamentos raciais, e que um em cada quatro se sentiram incomodados porque as pessoas fizeram suposições sobre seu histórico racial – ou seja, sua ascendência.
Mixed: um leque de raças
Embora o racismo com pessoas fruto de casais brancos e negros seja o mais abordado, os mixed também podem ser descendentes de várias outras combinações. No censo dos Estados Unidos de 2020, 4 milhões de pessoas se classificaram como branco e nativo-americano ou nativo do Alasca, 3,1 milhões como branco e negro, e 2,7 milhões como branco e asiático. Houve uma mudança de mais de 1000% em relação à quantidade de pessoas que se classificou como “branco e outra raça” em um período de dez anos.
Essa variedade de culturas dentro de uma mesma classificação evidencia que pessoas mixed não são facilmente categorizadas e não podem ser colocadas na mesma caixa. Suas vivências e experiências são diferentes a depender de sua ancestralidade e do modo com que são vistos pela sociedade.
Mudanças demográficas pela Lei dos Direitos Civis
Mas, voltando à pesquisa, por que a quantidade de pessoas que se classificam como tendo duas ou mais raças aumentou tanto? Pesquisadores atribuem o crescimento à uma mudança no censo, que agora permite que o entrevistado dê mais de uma classificação, respondendo tanto à pergunta de herança latina ou hispânica quanto à pergunta de raça. Entretanto, se pesquisarmos mais a fundo, podemos chegar até 1964: o ano da criação da Lei dos Direitos Civis.
Para contextualizar, a abolição da escravatura nos Estados Unidos aconteceu em 1865, mas, semelhante ao Brasil, o racismo não acabou aí. Digo semelhante porque, embora aqui esse preconceito seja palpável, lá ele estava presente nas próprias leis segregatórias. Por muitos anos, existiram locais específicos para brancos e negros e leis que os impediam de se relacionarem ou de formalizarem casamentos.
A Lei dos Direitos Civis, que pretendeu garantir o fim da segregação racial, ainda é muito recente. Por isso, o aumento na quantidade de pessoas mixed está ligado também ao crescimento no número de casais birraciais, que com o passar do tempo, ficam cada vez menos estigmatizados. Entretanto, o estigma ainda está presente: uma das violências que os mixed sofrem é justamente serem vistos pela sociedade como frutos de um casal interracial.
Discriminação disfarçada de preocupação
Muitas vezes, pessoas mixed são acusadas de não abraçarem uma raça o suficiente, como se precisassem lembrar a todos, em todos os momentos, de sua herança racial. Kamala Harris, vice-presidente dos Estados Unidos, vivenciou cobranças como essa durante o período eleitoral. Entretanto, cobrar isso de pessoas multirraciais é apenas outra forma de discriminação escondida atrás de um disfarce de preocupação.
Na linha fina da reportagem “A solidão de ser mixed race na América”, publicada pela Vox, a frase “eu tive que descobrir a linguagem para descrever a mim mesmo” define bem o sentimento de ser pressionado a se rotular. Embora Estados Unidos e Brasil sejam diferentes na forma como enxergam as classificações de raça, existem semelhanças no quesito da autodefinição e as polêmicas que permeiam esse tópico.
Assim, enquanto uns criticam o uso do termo “pardo”, outros defendem que essa é a melhor forma de encaixar aqueles que se enxergam como “não tão branco e nem tão negro” – mas isso é tema pra outro texto. Dessa forma, embora haja diferenças nas definições, algumas vivências também podem ser parecidas.