Jane, the Virgin: um olhar metalinguístico sobre o preconceito
- 16 de novembro de 2022
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- Theillyson Lima
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A novela estadunidense aborda pautas sociais envoltas em uma narrativa improvável. Alerta de spoiler!
Paula Orling
Drama teatral, romance intenso e suspense misterioso são algumas das características clássicas relacionadas às produções cinematográficas que incluem a cultura latina. Dentro destes conteúdos, o que mais se encontra é estereótipos: latinos criminosos, traição normalizada ou amor à primeira vista.
Com o propósito de quebrar preconceitos por meio de uma sátira metalinguística (ou seja: é uma autoprofessa telenovela que se diverte às custas de telenovelas tradicionais), Jane, the Virgin (Jane, a Virgem, em português) é uma versão estadunidense de um conteúdo tradicionalmente latino: as telenovelas. Com exatos 100 episódios narrados, uma história cheia de reviravoltas enche os olhos de quem busca novos panoramas sobre a cultura latina.
História da Jane
Partindo de um mundo completamente fora da realidade comum, a novela coloca em xeque pautas sociais delicadas de uma maneira suave e quase velada. Na história, uma virgem neta de venezuelanos é inseminada artificialmente com a última esperma do dono do hotel em que trabalha; a partir deste contexto, uma série de comparações entre classes sociais surge, já que o Mateo é filho da Jane escritora, garçonete e professora, e do Rafael Solano, o diretor do hotel Marbella, mas que também vive como playboy nas horas livres.
Rafael também faz parte de uma família latina, mas, no caso dele (SPOILER!), a relação é de adoção. Assim, ao longo dos episódios, o narrador contrasta pontos importantes das relações familiares, especialmente na relação que ele tem com a irmã não biológica Luísa Alver, que também é médica e foi responsável pela inseminação por engano de Jane.
Já no início da narrativa, Jane Villanueva descobre que seu pai desconhecido é um famoso ator mexicano de novelas, Rogelio de la Vega; neste sentido, a série questiona mais uma vez os privilégios da classe dominante, reforça a presença de latinos em cargos de protagonismo e futilidade na riqueza. Ao longo das temporadas, Rogelio passa a valorizar aspectos familiares, muito baseados na cultura.
O plano de fundo da história é o triângulo amoroso entre Jane, Rafael e o noivo da virgem, Michael Cordero Jr. É interessante notar que cada um dos três tem uma origem étnica diferente, questão que não é avaliada como negativa ao longo da trama. Enquanto Jane tem origem venezuelana e mexicana, Michael é estadunidense e Rafael, italiano.
Religiosidade para Jane
Jane, the Virgin não existiria se não fosse o plano de fundo religioso. Nem mesmo o nome seria este, porque a decisão de Jane de não ter relações sexuais é produto da gravidade que o rompimento do hímen representa para a fé tradicional católica, ensinada pela sua abuela.
Ao longo de toda a narrativa, Jane vive altos e baixos no universo da fé, se apegando à ela nos momentos difíceis, como o sequestro do Mateo, internação da Alba, morte do Michael e, especialmente, as dúvidas sobre sua sexualidade.
Uma comparação interessante da série é entre a religiosidade tradicional venezuelana de Alba e da moderna de Jane. É possível notar diferenças entre as crenças das duas sobre sua fé, que pula a geração da (considerada) desviada Xiomara.
Enquanto Alba vai à igreja com regularidade, Jane perde muitas missas. A avó considera a religião o eixo que une a família; já a neta preza pela paz familiar acima de qualquer coisa.
Neste sentido, chega a ser impressionante a decisão de Jane ao preservar a virgindade. Contudo, é inegável que esta decisão é bastante volúvel, já que ela decide quebrar o voto em alguns momentos, mas voltando à ideia de pureza mais pela culpa do que pela convicção.
Governo e políticas públicas em Jane, the Virgin
A série opina claramente sobre a posição política que os cidadãos latinos nos Estados Unidos costumam seguir. Ao criticar abertamente as políticas públicas dos republicanos, em especial na figura do ex-presidente estadunidense Donald Trump. Como uma comédia romântica satírica, a produção usa o humor para atacar abertamente posicionamentos extremistas de direita, além de ridicularizar manifestações xenofóbicas.
Em relação a esta crítica, Jane, the Virgin ressalta a questão da imigração na figura da avó de Jane, Alba Villanueva. Ela vive apreensiva e fugindo da fiscalização policial até decidir arriscar o futuro em busca do tão sonhado green card.
Mas esta não é a única questão em que Alba se envolve. A língua espanhola também é foco de preconceito na narrativa. Ao longo da série, Alba passa a trabalhar na loja de presentes do Marbella e precisa defender uma imigrante que pede informações em espanhol e sofre xenofobia por uma estadunidense.
Como boas latinas imigrantes, trabalhar em mais de um subemprego é cotidiano para as mulheres Villanueva. Alba, a matriarca, é cuidadora de vários idosos. Xiomara, a Villanueva do meio, é professora de dança que canta nas noites livres. Jane, a personagem principal, além do sonho de ser escritora, luta para sobreviver trabalhando como garçonete e professora.
Acessibilidade e transporte em Miami
Em Miami, uma cidade majoritariamente de imigrantes, a telenovela quebra paradigmas ao refletir uma realidade pouco comentada em Hollywood: o transporte público estadunidense. Sendo uma ferramenta utilizada apenas por quem não tem dinheiro para chamar os famosos táxis amarelinhos, Jane, the Virgin retrata a vivência de quem depende dos ônibus na cidade praiana.
Jane, por exemplo, vive muitas reflexões nos ônibus, tem insights para seus livros e conversas familiares profundas. Isso sem contar que vai ao hospital dar à luz o bebê Mateo e ao próprio casamento com Michael de ônibus.
Além da frequência em que os latinos da produção utilizam a ferramenta, as propagandas nos tetos destes transportes públicos também são majoritariamente voltadas a esse público. Desde propagandas até shows de latinas como a mexicana Paulina Rubio são destaques nos comentários do narrador. De forma velada, Jane, the Virgin mostra a problemática que os imigrantes têm em relação à acessibilidade nos deslocamentos.
Quebra de estereótipos
Conforme a série recria uma novela mexicana, quebra alguns estereótipos ofensivo em relação aos latinos. Ao mesmo tempo que desconstrói preconceitos, reforça outros, não necessariamente ofensivos. Como religiosos, os Villanueva refletem a vivência de milhares de famílias latinas, que vivem em prol da religião. Mesmo os não devotos, vivem comumente circundando datas comemorativas, festas e tradições ligadas principalmente ao catolicismo.
Já sobre a alegria latina, é difícil dissociar as festas dos latinos. As comemorações, com comida aos montes, humor e muito toque, são pauta na série e na vivência destas culturas. Esta mesma percepção pode ser encontrada no Brasil que, apesar de ser uma cultura latina muito singular, também vive as movimentações extrovertidas e agitadas dos latinos.
Da mesma forma, a série reflete um ponto forte destas culturas: o protagonismo feminino. É impossível negar a proeminência que as mulheres têm tanto na série quanto no universo latino, especialmente para as famílias imigrantes. Ao contar a história de mulheres que reconstruíram a estrutura familiar e financeira por conta própria, Jane, the Virgin dá palco às que têm pouca visibilidade em Hollywood e reforça um estereótipo de força, de coragem e de poder feminino.