A ditadura de Chico Buarque
- 5 de outubro de 2022
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- Theillyson Lima
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O silêncio forçado serviu de inspiração para compor letras que condenavam o regime autoritário de 1970.
Franciele Borges
No período da Ditadura Militar (1964-1985), o direito de se expressar foi proibido por militares que tomaram o poder. O Ato Institucional-5, instituído no governo do general Costa e Silva, deu início ao terrorismo de estado. Tal forma de governar é desconhecida pelas últimas gerações, mantendo um conhecimento terceirizado como em livros históricos e pelo que nossos pais, tios e avós contam. Outra ferramenta de comunicação que pode explicar o período sombrio que os brasileiros viveram nas mãos dos militares, período este que alguns desentendidos são simpatizantes, é a música.
A censura estava como meio de intervenção às produções artísticas da época. A imprensa era fortemente vigiada para não falar contra o regime militar. As punições severas como multas, interdição, prisão, torturas e assassinatos moviam os passos obedientes dos diretores de TV, rádio e produtores musicais. Além disso, qualquer produção deveria ser encaminhada à Censura Federal de Brasília, que analisava o teor do conteúdo para não haver nenhuma crítica sobre o regime político.
Foi assim que alguns artistas que ainda vivem, puderam expressar a ditadura nas letras de modo que não eram punidos por isso. O repertório envolvia canções que falavam de amor, sambas e poesias que não tinham uma dedicação específica. A esta, portanto, se velava a aversão da repressão.
Quem cantava?
Em 19 de junho de 1944 nasceu Chico Buarque de Holanda no Rio de Janeiro. Com a música nas veias, desde os cinco anos de idade demonstrava que teria jeito para cantar. Ao chegar na fase adulta, fez amizade com Caetano Veloso, Gilberto Gil, Vinícius de Moraes e Gal Costa. Todos esses e outros artistas já consolidados e admirados pelo público, passaram pela temida censura e tiveram várias de suas letras reprovadas, sendo que alguns até foram presos.
Mas voltando para Chico Buarque, o cantor é um exemplo nítido de quem tinha composições que mostravam sua posição política na época. O Brasil, nos “anos de chumbo”, não era um país festeiro como é conhecido hoje. Os agentes do AI-5 andavam em todo canto armados para abafar a tranquilidade e liberdade das pessoas e manifestações.
Foi nesse clima tenso que Chico compôs Apesar de Você. A música faz um desabafo em um tom alegre de samba, mas não incentiva a revolta popular. O Você, o verso-título pode ser tanto a própria ditadura quanto o general Emílio Médici, então presidente do País. Seguindo as regras, o autor submeteu a letra para a censura, certo de que seria reprovado. Porém, o censor encarregado da avaliação foi desatento e não decifrou o sentido duplo do conteúdo e deixou passar.
Acontece que a sociedade compreendeu o teor da canção, provocando uma humilhação pública, ou seja, debochando do poder. A Ditadura reagiu punindo o militar e Chico sofreu mais com a retirada da música das rádios da época e foi chamado a depor, momento que aproveitou para dizer às autoridades policiais o que os versos significavam: o “você” da letra era uma “mulher mandona, autoritária”. A explicação não foi aceita. Sua música foi excluída e Chico perseguido desse dia em diante.
As consequências de compor
Vários trabalhos do cantor foram censurados como Cálice, composta em parceria com Gilberto Gil. Em 1974, Chico lançou o disco Sinal Fechado, que continha músicas de outros autores. Para despistar a repressão, o artista escolheu o pseudônimo Julinho de Adelaide para assinar seus trabalhos. “Cheguei a pensar se deveria excluir, mas achei que poderia ser uma atitude pirracenta e até infantil. Sabendo que as pessoas gostariam de ouvi-la, não me achei no direito de não gravá-la.”, afirmou Chico na época.
Esta e tantas outras músicas compostas por Chico Buarque e seus amigos refletiram o desgosto popular com o medo que a população tinha com os militares no poder. Você que inventou a tristeza/ Ora, tenha a fineza/ De desinventar/, definia o pedido dos brasileiros, responsabilizando a Ditadura pelo sumiço de parentes e mortes repentinas e inexplicáveis de políticos e pessoas.
Apesar dos reflexos causados por esse evento, Chico refletia a ansiedade de que o regime chegaria ao fim. Do início da música até o fim dela, ele e o coro repetem: Apesar de você/ Amanhã há de ser/ Outro dia/.
Letra completa:
Hoje você é quem manda/ Falou, tá falado/ Não tem discussão/ A minha gente hoje anda/ Falando de lado/ E olhando pro chão, viu/ Você que inventou esse estado/ E inventou de inventar/ Toda a escuridão/ Você que inventou o pecado/ Esqueceu-se de inventar/ O perdão/ Apesar de você/ Amanhã há de ser/ Outro dia/ Eu pergunto a você/ Onde vai se esconder/ Da enorme euforia/ Como vai proibir/ Quando o galo insistir/ Em cantar/ Água nova brotando/ E a gente se amando/ Sem parar/ Quando chegar o momento/Esse meu sofrimento/ Vou cobrar com juros, juro/ Todo esse amor reprimido/ Esse grito contido/ Este samba no escuro/ Você que inventou a tristeza/ Ora, tenha a fineza/ De desinventar/ Você vai pagar e é dobrado/ Cada lágrima rolada/ Nesse meu penar/ Apesar de você/ Amanhã há de ser/ Outro dia/ Inda pago pra ver/ O jardim florescer/ Qual você não queria/ Você vai se amargar/ Vendo o dia raiar/ Sem lhe pedir licença/ E eu vou morrer de rir/ Que esse dia há de vir/ Antes do que você pensa/ Apesar de você/ Amanhã há de ser/ Outro dia/ Você vai ter que ver/ A manhã renascer/ E esbanjar poesia/ Como vai se explicar/ Vendo o céu clarear/ De repente, impunemente/ Como vai abafar/ Nosso coro a cantar/ Na sua frente/ Apesar de você/ Amanhã há de ser/ Outro dia/ Você vai se dar mal/ Etc. e tal.