A diferença está nos zeros
- 2 de junho de 2021
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A naturalização da morte pela Covid-19
Damáris Gonçalves
A pandemia do novo coronavírus tirou o Brasil dos eixos. Nada que este país enfrentou no passado o preparou para o que seria a Covid-19. Em março de 2020 nuances do que seria o futuro foram apresentados. Com o tempo, os noticiários adotaram como pauta fixa as infecções e mortes causadas pela doença. O cenário brasilerio foi contextualizado pela quarentena, narrado pelo isolamento social e emoldurado pelas máscaras faciais.
Todos os portais e programas de notícia se dedicavam à cobertura em tempo real da doença. A sensibilização com a situação do país era evidente em coberturas jornalísticas. Em pouco tempo a narrativa midiática e social mudou. Com o aumento de mortes, houve uma notável diferença de abordagem dos jornais. Os zeros aumentaram, no entanto, a naturalização deles também.
No Jornal Nacional
Em 12 de março de 2020, o primeiro brasileiro perdeu sua vida para o novo coronavírus. Tratava-se de uma paciente de 57 anos internada no Hospital Municipal Doutor Carmino Cariccio em São Paulo. Desde então, o avanço exponencial das infecções e mortes pela Covid-19 compõem a maior parte das notícias. Diariamente, o Brasil registra uma média móvel de 1.800 mortes pela doença, de acordo com o consórcio de veículos de imprensa.
Com apenas 144 dias desde o início da pandemia, o Jornal Nacional anuncia o marco de mais de 100 mil mortes pela doença no Brasil. Em 08 de agosto do último ano, os âncoras William Bonner e Renata Vasconcellos, se desviaram da programação normal, trazendo uma reflexão sobre o acontecimento. “O cidadão brasileiro tem o direito à saúde. E todos os governantes brasileiros têm a obrigação de proporcionar aos cidadãos este direito.” A fala sensibilizada de Bonner narra o Artigo 196 da Constituição Brasileira, ressaltando a discrepância entre o que é previsto e o que foi feito pelos governantes do país.
Em tom entristecido, os jornalistas ainda argumentam sobre a falta de responsabilidade do governo Bolsonaro e a sua influência direta na causa dessas mortes. “Diante disso tudo é necessário relembrar a constituição, porque isso nos levanta uma pergunta importantíssima (…) o Presidente da República cumpriu esse dever?”, questiona Vasconcellos.
O posicionamento do JN contemplou as dores das famílias em luto, a indignação com as mortes que poderiam ser minimizadas e a preocupação com a desumanização dos falecidos. Bonner enfatiza que “eles não podem ser vistos apenas como números! O Jornal Nacional não vai se cansar de repetir (…) nós não podemos nos anestesiar!”.
Além do pronunciamento no Jornal Nacional, o G1 publicou uma página especial homenageando as vidas perdidas. O material contempla o histórico da pandemia, desde a primeira morte até às 100 mil. O luto emoldura a página, contando diferentes histórias de vítimas da Covid-19 e de seus familiares. Dando rostos aos números e nomeando as estatísticas, o posicionamento do Grupo Globo ficou claro.
O marco histórico comoveu o Brasil. Como de costume, os números foram pauta para os noticiários e renderam homenagens em todo país. Uma missa foi ministrada aos pés do Cristo Redentor, em homenagem aos 100 mil mortos pela covid-19. Centenas de postagens foram feitas nas redes sociais, lamentando tantas perdas.
A pandemia durou mais do que o esperado e as mortes quadruplicaram. No quinto mês da pandemia o Brasil atingiu o marco de 100 mil mortes. Em abril deste ano, o mesmo número de vidas foi perdido em apenas 36 dias, totalizando 400 mil mortes. E embora os números sejam assustadores, o medo e impacto midiático se suavizou. O jornal de maior audiência do país foi novamente ao ar, trazendo a atualização das mortes em rede nacional.
O marco simbolicamente trágico, como apontou Bonner, veio acompanhado de gráficos e estatísticas. O texto elaborado e indignado de cinco meses atrás não compôs a programação do JN. Embora a tonalidade dos jornalistas mostrasse empatia e respeito, a normalidade de ver algo similar todos os dias parece ter distanciado a realidade da tragédia.
A solidariedade pelas vidas perdidas não estava mais em pauta e embora a quantidade fosse significativamente maior, a paralisação não aconteceu proporcionalmente. Pouco tempo depois, com 450 mil mortos, a declaração do jornal se mostrou ainda distante, mantendo o modelo da notificação anterior.
A válida e profunda homenagem prestada pelo G1 no marco de 100 mil mortes ainda está no ar, porém não adicionou os outros 300 mil rostos à lista. “Não podemos nos anestesiar”, enfatizou o editor-chefe do Jornal Nacional. No entanto, a fadiga pandêmica infectou o brasileiro e sua mídia como resultado. No STF, 1 minuto foi suficiente para honrar as mortes perdidas em 1 ano de pandemia. Ironicamente, o impacto diminuiu conforme a quantidade aumentou.
Não se trata daquilo que foi feito e refletido quanto aos primeiros mortos pela doença. Tampouco em invalidar os esforços feitos quanto à pandemia. É sobre questionar o que torna um grupo prioridade perante o outro. A narrativa adotada pelo principal grupo midiático do país guia o comportamento social. Trata-se de ir contra a anestesia da massa, mesmo que não faça parte da zona de conforto.
Com Pugliese
Um exemplo claro da naturalização das mortes está lá em 25 de abril do último ano. Naquele mês, a marca de 4 mil mortes foi tragicamente alcançada no Brasil. Eram mais de 50 mil casos confirmados do novo coronavírus no país. A novidade da doença que aterrorizava o brasileiro não impediu a influenciadora fitness Gabriela Pugliesi de dar uma festa, desrespeitando a quarentena. A festa serviu de recepção para a ex-bbb Mari Gonzalez e contou com a presença de alguns amigos sem o uso da máscara.
O caso repercutiu negativamente nas redes sociais, causando o temido cancelamento de Gabriela. Da noite para o dia, 4 milhões de seguidores deixaram a influenciadora e junto deles, 10 patrocinadores abandonaram sua parceria. Pugliesi desativou seu perfil no Instagram a fim de evitar consequências maiores.
Avançando no tempo, o que antes era um caso isolado e “cancelável”, um ano depois viria a ser uma rotina no país. No início de 2021 vários casos de aglomerações clandestinas foram registrados por todo Brasil. Multidões sem máscara nas ruas, praias, bares e os mais diversos estabelecimentos. No mesmo dia (14/02), o país registra a maior média diária de mortes desde o início das infecções. A inversa proporcionalidade entre milhares de mortes e a normalidade das mesmas era cada vez mais evidente.
Com o passar do tempo, o aumento de casos e fatalidades não era mais motivo para a crítica e reflexão do ano anterior. Os mesmos milhões que protagonizaram o cancelamento da influenciadora, agora atendiam as mais diversas festas nas ruas. As massas perderam a sensibilidade quanto às fatalidades e se acostumaram com o mórbido “novo normal”.
O caso Pugliesi gerou grande repercussão na mídia devido a falta de consideração e sensibilidade da influenciadora. No entanto, o impulso e fervor em apontar seus óbvios erros não foram o suficiente para mantê-los dentro de casa, respeitando o isolamento social. “F***-se a vida!”. A frase declarada por Gabriela resumiu o conceito de sua festa. Posicionamento profundamente criticado pelos internautas agora também representava grande parte do Brasil.
O caso Pugliesi demonstrou o mesmo fenômeno notado na cobertura do Jornal Nacional. A sensibilidade do povo brasileiro quanto ao aumento de mortes diminuiu, e as ações da população concordam com isso. Se por sobrevivência ou interesse, a anestesia alcançou o coração do Brasil.
Embora seja crucial a adaptação a novas realidades, a reflexão quanto às vidas perdidas precisa ser prioridade. É necessário colocar nomes nos números e rostos nas estatísticas, desta forma eles continuarão relevantes na história brasileira. Pois nas palavras de William Bonner, “essas vidas perdidas eram de brasileiros como todos nós”.