Tem sangue, mas também tem arte
- 12 de maio de 2021
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A produção cinematográfica que despertou a fama internacional de um dos locais mais violentos do Brasil
Hellen Piris
De longe, o filme “Cidade de Deus”, foi uma das produções brasileiras mais reconhecidas e aclamadas nacional e, principalmente, internacionalmente nas últimas duas décadas. Lançado em 2002 e dirigido pelo cineasta, ativista e produtor brasileiro Fernando Meirelles, o longa-metragem retrata crua e explicitamente uma porção da realidade das favelas brasileiras.
O filme ganhou vários festivais, estreou em cinemas do mundo inteiro e, em 2004, concorreu ao Oscar com quatro indicações: Melhor Diretor; Melhor Roteiro Adaptado; Melhor Edição e Melhor Fotografia, sendo ovacionado pela plateia durante sete minutos, mais da metade do tempo que Charlie Chaplin foi aplaudido. Recebeu elogios de jornais britânicos, franceses e até do The New York Times e The Guardian. Foi a primeira produção nacional que chegou a este patamar.
Da favela ao Oscar, e de volta à favela
Partindo desse contexto de aparente glória e fama, você pode até pensar que as carreiras dos atores de Cidade de Deus – a maioria deles nascidos e criados nas favelas do Rio de Janeiro – estavam prontas para deslanchar, afinal, foi um filme que correuo globo.
Porém, a carreira de ator está longe de ser uma realidade para a maioria deles. No documentário “Cidade de Deus: 10 anos depois”, lançado em 2015 e produzido por Cavi Borges e Luciano Vidigal, os atores do longa são entrevistados para contar o que aconteceu com as suas vidas após gravarem o filme.
Indo direto ao grão, nenhum deles se destacou posteriormente no mercado cinematográfico. As personagens principais chegaram a atuar em outras produções nacionais, mas por pouco tempo. Há algumas exceções, claro. Alice Braga por exemplo, após dar vida a personagem “Angélica” no filme, participou de outras produções brasileiras e estrangeiras, incluindo a mais destacada, I Am Legend (Eu Sou a lenda, em portuguˆs), com Will Smith. Jorge Mário da Silva, também conhecido como Seu Jorge, o “Mané Galinha” em Cidade de Deus, fez sua carreira de cantor e ator. Teve participações relevantes no contexto da arte brasileira, mas o brilho do seus dias como Mané Galinha foi diminuindo com os anos.
Os motivos pelos quais a notoriedade destes nomes promissores do cinema brasileiro, durou tão pouco, são variados. Não foi falta de talento, vontade ou comprometimento. As oportunidades para esses jovens atores, mesmo após ter participado do elenco do filme, foram poucas, a remuneração mínima e as dificuldades muitas, especialmente por se tratar de atores que iniciavam na carreira cinematográfica.
“Brazil? Yeah, I heard something about the favelas”
Apesar de ter demonstrado o contrário, a arte sul-americana ainda é enxergada pelo estrangeiro como amador ou inferior. Como o primeiro contato com as produções brasileiras para muitos países, foi com Cidade de Deus, essa imagem foi reforçada pelo contexto do filme, mas ao mesmo tempo, rompeu com alguns desses estereótipos.
O roteiro bem desenvolvido, o profissionalismo dos atores, a trama em si do longa e a edição do produto, demonstram a capacidade e qualidade das obras brasileiras. também propiciaram um olhar mais positivo do Brasil.
Ainda assim, os aspectos negativos já citados anteriormente e a cultura brasileira ainda são a primeira associação que a maioria faz. Ou é a praia de Ipanema, Copacabana e o Cristo, ou são as favelas. Dessas referências não passa. De fato, o longa retrata o típico cenário dos subúrbios de Rio de Janeiro e, sim, há pobreza, violência e corrupção,mas onde não há?
Filme, mas também realidade
Cidade de Deus não é apenas o filme, é um bairro real que abriga quase 40 mil moradores, e cujo estigma após o longa passou a ser mais discriminado e alvo de preconceitos. Era uma fama negativa, mas era fama, tanto que em 2011, o então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, em visita ao Rio de Janeiro, deslocou-se até o bairro Cidade de Deus e caminhou pelas suas ruas, cumprimentando os moradores. Os motivos da escolha do bairro não foram revelados, mas o filme definitivamente teve influência nessa decisão.
Mais de 20 anos após o lançamento, as coisas não mudaram muito para quem mora na Cidade de Deus. Pela noite, os moradores podem se cobrir com um lençol, ou podem ser cobertos por um plástico, após serem vítimas de mais um enfrentamento de gangues. Pela manhã, eles podem acordar e tomar água ou tomar bala. Podem comprar pão branco na esquina, ou maconha na boca.
Com a produção do filme, a realidade do bairro talvez deveria ter mudado e melhorado. Poderia ter sido um chamado de atenção às autoridades, à diminuição da corrupção e da morte de inocentes. Mas a última coisa é que atualmente o bairro Cidade de Deus é uma cidade de Deus. Nestes casos, o reconhecimento mundial não basta. É preciso uma atitude coletiva, um compromisso social para que o Brasil não seja lembrado por suas favelas sangrentas, e sim pela sua arte competente.