O tribunal da internet no julgamento de empresas
- 29 de março de 2021
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O impacto insuficiente da cultura do cancelamento em grandes corporações e a falsa sensação de poder
Esther Fernandes
“Cultura do cancelamento: cancelar para mudar?” é o título do artigo de Alessandro Ferreira da Silva, publicado na Revista Argentina de Investigación Narrativa, aponta a grande questão que norteia a cultura do cancelamento. Afinal, seria esse o objetivo do movimento? Promover uma punição com um propósito educativo?
Inicialmente, é preciso entender o que é o cancelamento para então discutir seus objetivos. O termo se consolidou na internet e ganhou força em meados de 2017 em uma onda de denúncias de casos de assédio sexual em Hollywood (já falamos sobre isso nesta edição). De modo geral, a cultura do cancelamento é a exposição de um fato, geralmente através das redes sociais, e após a reação negativa, a grande massa da web promove o linchamento.
As vítimas desses ciberataques vão desde pessoas anônimas à personalidades, pseudo famosos e famosos. Entretanto, o cancelamento não se limita à pessoas. Os episódios de hostilidade alcançam marcas, empresas e até instituições. Não coincidentemente, a onda do cancelamento se estabeleceu na internet e atingiu dimensões que ultrapassam as telas. Uma pesquisa realizada pela plataforma Mind Miners apresenta a intenção do brasileiro de cancelar uma marca. Segundo a pesquisa, 41% das pessoas excluem a marca pela performance do produto, enquanto 37% cancelam a empresa por adotar um posicionamento “falso”, que não é sustentado pelas suas ações em geral.
Os mecanismos sociais por trás da cultura do cancelamento podem ser entendidos através da Microfísica do Poder, do filósofo Michel Foucault. Apesar de o poder ser associado aos grandes governos e corporações, para Foucault, ele se espalha como uma rede que transcende os indivíduos. O poder não está nos indivíduos, mas sim na rede que é composta por discursos. Um grupo se mantém forte, enquanto seus discursos forem fundamentados. Da mesma forma, uma comunidade pode cair através de incoerências na fala.
Retomando a questão inicial proposta nesta análise, vemos que a cultura do cancelamento é o constante vigiar e punir. E se tratando dessa cultura, o que entra em vigor é a coerência de discurso disfarçada de dilemas morais e éticos. Quando se trata de setores empresariais, o cancelamento possibilita efeitos prejudiciais atrelados ao nome da empresa, porém, não é suficiente para sua mudança de filosofia.
No capitalismo não existe consumo sustentável, desenvolvimento consciente ou políticas públicas de bem estar e qualidade de vida. Esse sistema se apodera do discurso mais favorável para fazer o máximo de dinheiro possível. Uma empresa que destoa do discurso de seu público-alvo, é suscetível ao cancelamento, entretanto, o cancelamento de grandes marcas não significa sua queda. Empresas não têm um discurso imutável. Suas manifestações são voláteis às movimentações da massa. Para derrubar uma empresa é necessário derrubar o sistema no qual ela faz parte. Enquanto o tribunal da internet insiste em acreditar que o cancelamento detém do controle de discursos, grandes corporações abusam desse falso poder para ganhar mais dinheiro e explorar as camadas mais baixas da sociedade.