Cancelamento póstumo
- 29 de março de 2021
- comments
- ABJ Notícias
- Posted in Análises
- 2
“Pode ajudar a entender os assuntos humanos para ficar claro que a maioria dos grandes triunfos e tragédias da história são causados, não por pessoas sendo fundamentalmente boas ou fundamentalmente más, mas por pessoas sendo fundamentalmente pessoas.” Neil Gaiman
Adalie Pritchard
“Minha vó também é racista, mas não posso cancelar minha vó, né?!”, disse uma colega em uma conversa sobre a cultura do cancelamento. Essa frase me fez pensar no seguinte: o que faz uma pessoa se tornar “merecedora” do cancelamento?
O terceiro presidente dos Estado Unidos, Thomas Jefferson, escreveu na declaração de independência: “todos os homens são criados iguais”. O mesmo homem escravizou mais de 600 seres humanos ao longo da sua vida, um fato que foi ignorado por muito tempo, mas não para sempre. Hoje, ele está sendo cancelado. Um descendente direto de Thomas Jefferson, pediu que o terceiro memorial do presidente em Washington-DC, nos Estados Unidos, seja substituído pela imagem de Harriet Tubman, que foi uma abolicionista e ativista política americana.
Mas qual a finalidade de cancelar alguém que já morreu?
A sociedade está se conscientizando cada vez mais sobre a discriminação contra as minorias, tanto do presente, como do passado. Isso a torna menos tolerante ao presenciar qualquer falta de respeito contra as minorias. Talvez, seja um sinal de progresso. Contudo, surgem perguntas sobre a efetividade de “cancelar”. Uma delas, em questão, é: por que cancelar figuras póstumas, até mesmo as históricas? Vale lembrar que se a pessoa está morta, o cancelamento se caracteriza apenas de modo simbólico. Um exemplo é o grande navegador e explorador genovês, Cristóvão Colombo, que não é mais reconhecido como um herói por ter desbravado oceanos e terras, mas sim um “cancelado” por ter escravizado os povos indígenas do Brasil.
O filme clássico “Gone with the Wind” (E o Vento Levou), de 1939, foi retirado do HBO (serviço de streaming americano) e de outros lugares por retratar preconceitos étnicos e raciais. A quem atribuir a culpa: à cultura da época ou ao diretor? Há coisas que estão erradas tanto em 1939 como agora. Logo, apagar nosso passado seria a melhor solução?
Existem filmes com temáticas ainda mais obscuras, como violência ou pedofilia, que permanecem intocados. Penso que isso se deve à conscientização sobre os movimentos anti-racistas, anti-homofóbicos, entre outros da mesma categoria. Como resultado, essas temáticas ficam em menor evidência. O romance de 1955, Lolita, trata da obsessão de um homem de meia idade por uma menina de 12 anos, com quem ele se envolve sexualmente. Assim, não deveríamos cancelar o livro e os OITO filmes baseados nessa história? Ademais, as atrizes que retratam Lolita, tinham a idade da personagem. Os temas do cancelamento, casualmente, combinam com eventos atuais e não necessariamente sobre o que é certo ou não.
Assim como existem ações e padrões que sempre foram considerados errados, alguns se tornaram aceitáveis. A suspeita de ser homosexual, décadas atrás, poderia acabar com a vida de alguém, enquanto fumar era saudável. Sócrates foi “cancelado” – por meio de um envenenamento – por ensinar ideias que agora estudamos nas escolas. Será que hoje abraçamos atitudes que serão consideradas imorais por nossos netos?
Estuda-se a história como se fosse uma narrativa fictícia composta de heróis e vilões. Gostamos de colocar essas figuras em categorias. Analogamente, são anjos ou demônios. Os anjos podem cair, mas os demônios sempre ficam embaixo. Quando alguém que admiramos comete alguma ação errada, sentimos vergonha de tê-los colocado em um pedestal, e jogamos o personagem inteiro e toda a sua trajetória na pilha do cancelamento. Nunca existiu alguém perfeito em todas as áreas da vida. Se pudéssemos olhar apenas para os fatos da história (na medida do possível, pois a história foi escrita pelos ganhadores), poderíamos focar no futuro. Portanto, ao invés de derrubar estátuas e monumentos, que tal melhorar como ensinamos a história?