Criminoso, mas, nem tanto
- 30 de outubro de 2019
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- Thamires Mattos
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No maior jornal argentino – El Clarín –, os preconceitos são evidentes
Hellen Piris
Com uma estrutura organizada, temas variados, atualizações constantes e confiança de um país inteiro, o jornal argentino El Clarín, fundado em 1945, é o de maior circulação do pais hispano. Possui uma orientação político-ideológica de direita e tiragem diária de mais de 248 mil exemplares, quase 90 mil a mais do que o seu concorrente, o jornal La Nacion.
Preconceitos são evidentes no Clarín. Podem ser encontrados facilmente em manchetes preconceituosas colocadas em letras maiúsculas vermelhas ou amarelas, ou quase desapercebidas em uma matéria que publicou depoimentos de um cidadão argentino e de um imigrante, mas deu mais destaque às declarações do primeiro.
Outro exemplo é a imagem que o Clarín transmitiu de um assassino e estuprador. “Encontram assassinada uma garota de 19 anos e detém a um soldado do exército”. Esse título foi destacado em 26 de outubro. Horas mais tarde, no mesmo dia, outra matéria revelou que o soldado acusado tinha o celular da vítima. Já no dia seguinte, o jornal informa que a jovem morreu por asfixia durante o ataque sexual. A foto principal da reportagem é o rosto do soldado – o assassino e estuprador. A imagem escolhida por parte do jornal é uma selfie, que, possivelmente, foi retirada de alguma das suas redes sociais. O assassino aparece com o uniforme militar, branco, sobrancelhas perfiladas, cabelinho na régua, sem sorriso nos lábios, olhos entreabertos tentando sensualizar com uma expressão egocêntrica. A foto poderia ter sido de sua abordagem pela polícia ou no momento da detenção. Não ignoro que este fato era extremamente recente, e, talvez, ainda não houvessem fotos dele em situação de julgamento ou prisão. No entanto, ao tomar como referência mais de 50 matérias já publicadas sobre feminicidio no mês de setembro e outubro, vemos que esse problema é recorrente. Apenas quatro tem a imagem do autor do crime sendo preso ou em julgamento. As outras possuem fotos do assassino “lindo e arrumadinho”. Com essa prática, o jornal emite certo crédito ao criminoso, enquanto o que deveria apresentar é um assassino em uma situação real – seja ela detido, dentro da prisão, algemado ou julgado.
Depois das notícias sobre feminicídio, continuei deslizando rapidamente o scroll do mouse para baixo, até que cheguei a uma seção que me fez subir a página e pensar: “de novo?”. A associação da mulher com a cozinha mais uma vez se fez presente. Claro, nada de errado com isso em si, mas encontrar em primeiro plano uma reportagem de receitas armênias, “herdadas e cheias de magia” na sessão “Entremulheres”, me levou a refletir sobre o quão automático e normalizada é essa ligação. O Clarín simplesmente reforça a ideia de “lugar da mulher é na cozinha”. São tantos os temas e assuntos de interesse para a mulher atual, mas o caderno para mulheres fica no status quo de anos atrás. Essa foi uma das reportagens principais da sessão feminina. Após ler a seção destinada às mulheres, procurei a dos homens, e, claro, não existia. Podemos até supor que, em um país latino-americano, o caderno de Esportes seja o mais lido pelo público masculino. No entanto, assim como para a mulher, seria positivo que o homem tivesse um espaço reservado a outros interesses. Isso também é uma forma de discriminação; é negar o universo de conteúdo que pode ser explorado por homens e mulheres.