Aliás, corromper-se parece fundamental
- 15 de maio de 2018
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- Thamires Mattos
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“O poder está em toda parte; não porque englobe tudo, e sim, porque provém de todos os lugares”, Michel Foucault
Kemelly Ferreira
Submetida a um regime de internato, uma moça que acabara de ingressar na faculdade só poderia efetuar eventuais saídas quando os pais permitissem que ela ultrapassasse os portões do colégio. Para cada motivo de saída, um e-mail precisava ser enviado para que a liberassem. Bom, esse era um dos termos de seus pais quando a matricularam na graduação e se certificaram de que sempre seriam contatados quando a filha quisesse sair. Talvez, apenas para algo simples como comer alguma coisa ou visitar alguém, quem sabe. Esse “contrato” teria um prazo de seis meses até tudo encontrar certa rotina. Estavam temerosos, penso, de perder a filha para…bem, chamemos isso de perigos que o mundo possa oferecer.
Da perspectiva da jovem universitária, seis meses era o suficiente para que seus pais lidassem com a ideia de que ela não moraria mais com eles. Por esse motivo, aceitou – achando que fosse uma negociação – os termos. Seria um novo começo em que decisões próprias seriam tomadas fazendo dela responsável pelos próprios atos e uma futura profissional de sucesso, etc. Os hipotéticos seis meses viraram dois, três anos e quase beirando a formatura, o contrato inicialmente proposto não fora modificado. Muito pelo contrário. Cada vez mais o cerco se fechara e a jovem se viu impedida de poder realizar qualquer tipo de saída. De maneira punitiva pelo péssimo relacionamento que mãe e filha nutriam, a jovem não poderia sair em excursões realizadas pela academia que seriam de extrema relevância profissional.
Privada, começou a contestar seus direitos com sua genitora, que recusou acordo e manteve a mão de ferro. A lei era clara! Ela não poderia sair sem autorização. Entretanto, se ela não saísse, estaria debaixo da asa protetora materna, concordando com os termos e se privando de realizar sonhos imprescindíveis para seu futuro. E agora? Continuaria ela na estática vida de submissão ou se arriscaria na tentativa de progresso? Naquele momento decisivo, decidiu corromper-se e ir contra lei primariamente imposta. Alterou suas características originais “obedientes”. Subornada pelo almejo de ascensão, burlou o sistema como pôde para conhecer o outro lado da moeda. O Brasil ganhara mais uma corrupta assumida.
Fácil é falar de poder e logo pensar em como somos privados pelo Governo em que estamos inseridos. Pensar no poder dessa maneira concentrada é quase involuntário pois nos vemos como vítimas de um domínio opressor. Mas, antes, vamos por partes. Para o filósofo e teórico social, Michel Foucault, o poder não está localizado na mão de alguns e não pode ser considerado como uma riqueza ou bem. “O poder está em toda parte; não porque englobe tudo, e sim, porque provém de todos os lugares”.
Os indivíduos estão sempre em posição de exercer poder e de sofrer sua ação. Dessa forma, o poder se apresenta em cadeia onde estão interligadas as relações interpessoais e suas relações de poder consequentes. Dentro dessa malha pautada pela ação e reação, o poder é bem mais examinado, da forma em que se apresenta, através das estruturas que ele acaba formando. Pequenos núcleos sociais são movidos por sua influência. Desde a autoridade de um presidente de uma empresa a um líder da menor associação de um bairro; desde um governo ditatorial de um país a uma república democrática; desde a relação familiar a direção de uma escola. As estruturas de poder estão em toda parte. E a propósito, não dá para fugir delas.
“Ninguém se preocupava com a forma como ele se exercia concretamente e em detalhe, com sua especificidade, suas técnicas e suas táticas. Contentava−se em denunciá−lo no ‘outro’, no adversário, de uma maneira ao mesmo tempo polêmica e global: o poder no socialismo soviético era chamado por seus adversários de totalitarismo; no capitalismo ocidental, era denunciado pelos marxistas como dominação de classe; mas a mecânica do poder nunca era analisada” – Michel Foucault
Contudo, essa ainda não é a questão. O foco está em saber porque a jovem universitária burlou a lei familiar materna e se rebelou corrompendo seus costumes. Aliás, corrupção é a modificação das características originais de algo.
Imagine uma sociedade em que a corrupção – até então ausente – não é possibilidade, pois, nunca ocorreu algo que pudesse ser chamado de “atitude corrupta”. Uma estabilidade tremenda em que todos caminham em uma mesma direção guiados por uma “lei moral” anos e anos sem nenhuma diferença e progresso. Tudo estático, ou melhor, aceitado. De repente, ouve-se que um indivíduo roubou o carro alheio. “Ato cruel, impensável, inaceitável! O carro não lhe pertencia!”, talvez acusassem os demais. Era a primeira vez que algo acontecia em que um cidadão atingia outro devido ao furto. Isso nunca tinha acontecido. Como lidar com isso? A partir deste ocorrido, as pessoas ao redor começam a questionar o acontecimento propondo meios para punir o infrator e fazer com que esse infortúnio não volte a se repetir. Com papel e caneta escrevem a primeira lei: “todo cidadão que pegar o carro alheio ou qualquer objeto que não lhe pertença será sujeito a isolamento social em um cômodo apertado durante 1 ano”.
Para cada acontecimento inusitado, uma nova lei é criada para benefício social. Um ato corrupto provocou em uma sociedade que, até então, desconhecia tais infrações a iniciativa de democratizar os direitos dos cidadãos por consequência de atos que acalentaram a dúvida e proporcionaram o conhecimento do certo e do errado. Só conhecendo o certo, como saberiam o que era errado – e vice-versa?
Agora, será que o ser humano em sua essência é corrupto ou ele, por co-existência, se torna corrupto? O que levou o cidadão em questão a roubar um carro sendo que nenhum outro o havia feito anteriormente? Simplesmente porque ele quis pegar o que era do outro ou, de repente, sua esposa grávida estava dando à luz e ele precisou pegar emprestado rapidamente um carro para socorrê-la? Nascem questionamentos.
Segundo Emerson Garcia, doutor em Ciências Jurídico-Políticas, a corrupção é como uma erva daninha que se prolifera com facilidade comprometendo seu entorno. A corrupção, se não ceifada logo no início, acaba se alastrando e fincando suas raízes de maneira cada vez mais profunda. Não é a essência do homem que é corrupta, mas a sua existência, ao fazer escolhas, consequentemente, conscientes da sua corrupção.
Mas se pararmos para pensar bem, a corrupção tem sido a arma-chave desde os primórdios. Em suas quedas e ascensões, o Império Romano é um dos muitos exemplos em que a corrupção esteve presente em um sistema atrás de outro. Dentro de suas estruturas de poder, reis e imperadores foram erguidos e derrubados, frutos de ações movidas por interesse pós interesses. É inegável que as ações corruptas propiciaram a ascensão e queda dessa grande potência. O que conheceríamos se não houvesse quem mostrasse os altos e baixos de uma sociedade que muitas vezes motivada por dúvidas, ergueu e derrubou líderes, criou e desfez leis, construiu e desconstruiu estruturas? Saberíamos o que, pelo menos, é a democracia se não tivessem ocorrido situações que nos levassem a refletir porque ela é tão necessária?
A corrupção é inerente ao desenvolvimento das nossas civilizações nem tão civilizadas assim. Poderíamos falar das diversas formas em que o poder se manifesta e as milhares de vezes em que foi submetido à atos corruptos “necessários” nesta incessante troca de interesses. Mesmo assim, distanciar a corrupção para somente àqueles que nos governam é esquecer-se de que cotidianos atos corruptos não nos fazem melhor que ninguém. Mas e então? Nos manteremos debaixo das asas da aceitação de um sistema assim, ou então o modificaremos?
Dentro da estrutura de poder em que estava inserida, a jovem universitária não viu outro meio de livrar-se do poder parental fortemente exercido. “Sairei quando for preciso e quando bem entender. Preciso romper essa barreira para não ser mais controlada por um sistema que me impede de obter a realização dos meus objetivos. Se o diálogo não resolveu, devo partir para a força. Faço isso porque POSSO!” Ela podia, não é? Agindo contra a lei do poderio, desafiou quem exercia poder sobre ela.
A jovem de essência incorrupta, em sua existência, tomou uma decisão que a tornou corrupta frente a uma lei estabelecida. É assim que acontece. E, infelizmente, é um pretexto para estarmos sempre buscando o desenvolvimento, sendo ele individual ou pensando no bem de uma nação. Agora, o questionamento fica: até onde corromper-se é fundamental?