Do “apropriar-se” da hibridização
- 16 de agosto de 2017
- comments
- Thamires Mattos
- Posted in Análises
- 0
“As identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação”, Stuart Hall
Ronaldo Pascoal
Se “post-truth” (pós-verdade), foi a palavra escolhida, segundo o dicionário Oxford, para representar o ano de 2016, então é plausível divagar que para 2017 talvez o termo escolhido pelo dicionário para representar o Brasil, seja “apropriação cultural”. Isso por que infindáveis discussões foram e ainda são levantadas em torno da questão. Porém, pouco se debate o sobre o tema visando a explicar e esclarecer de fato as várias lacunas abertas pelos diversos veículos de comunicação. O que nos é oferecido pela mídia, majoritariamente branca, são apenas comentários de terceiros em publicações sugestivas, baseados em opiniões próprias e quase sempre, extremistas.
Exemplo disto foi a publicação na página do Ministério da Educação (MEC), em maio do ano passado. Lorrayne Isidoro, negra, estudante de um colégio público no Rio de Janeiro, passou em primeiro lugar na 16ª Olimpíada Internacional de Neurociências. Isso a torna a única representante do Brasil na Dinamarca. Não que seja um diferencial o fato dela ser negra e estudante de um colégio público, entretanto, é preciso frisar esses pontos para entender o que aconteceu após a publicação feita em homenagem a Lorrayne.
A ilustração é um recurso já muito utilizado por profissionais da área de criação e design, principalmente em redes sociais. E foi utilizando este recurso que o MEC teve seu suplício. Na ilustração usada pela pasta, Lorrayne é retratada em tons mais claros, porém, ainda negra e com cabelos lisos. Ao lado, uma citação extraída de uma entrevista da própria aluna. Isso foi o suficiente para os seguidores da página lançarem comentários negativos à publicação. Não o bastante, dois dias depois, a página Socializa o Design fez uma comparação com a ilustração e a foto de Lorrayne, o que acarretou em mais compartilhamentos e comentários desaprovando a ação do MEC. Fato é que a grande mídia repercutiu o episódio e até mesmo jornais de renome como Folha e O Globo, dedicaram uma matéria sobre o acontecido.
As críticas focaram-se na questão do branqueamento na ilustração e no fato do MEC não ter mencionado a escola onde a menina estudava. O que os autores dos textos desses periódicos e também dos blogs que divulgaram o fato se esqueceram é de que o MEC sim mencionou a escola e ainda divulgou a entrevista completa de Lorryane no site de Central de Mídia da pasta, cujo link está disponível na descrição da publicação. Além do fato de o MEC usar representantes negros em outras publicações, o que nega a possibilidade do ministério ser racista, como foi acusado. Lembrando que há uma grande diferença entre, ser e ter.
Qual a novidade?
Hollywood sempre esteve envolvida em polêmicas sobre “branqueamento”. Outra divulgação a ser discutida na mídia foi o filme Gods of Egypt (Deuses do Egito), dirigido por Alex Proyas e estrelado por Gerard Butler, Nikolaj Coster-Waldau, Brenton Thwaites, Courtney Eaton, Geoffrey Rush, Chadwick Boseman, entre outros. O longa de 2016 começou a ser criticado logo após a exibição de seu trailer, com comentários dizendo que a produtora foi racista ao colocar apenas um negro para fazer um filme ambientado no Antigo Egito. De fato, Boseman é o único ator negro no filme em papel de destaque, interpretando Toth, o deus da sabedoria. Todavia, é preciso destacar que outros negros aparecem no filme em cenas de figuração, bem como em cenas de coadjuvantes.
Após uma série de críticas, a empresa responsável pelo casting dos atores e o próprio Proyas vieram à mídia e pediram desculpas pela seleção realizada. Entretanto, é importante dizer que o filme não trata a história do povo egípcio e nem seus hábitos culturais, mas sim uma fantasia entre as divindades na religião egípcia, que se fossem para ser retratadas como de fato eram, deveriam ser metade homem e metade animal.
Crítica parecida ocorreu em 2011 quando a Caixa Econômica Federal lançou um comercial em que Machado de Assis foi interpretado por um ator branco. O público alvoroçou a campanha publicitária e até a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (Seppir-PR), emitiu nota oficial pedindo que o erro fosse corrigido, haja vista que Machado de Assis era afro-brasileiro. A Caixa corrigiu a falha, se lamentou e lançou a campanha novamente, mas dessa vez com um ator negro.
Relações equivocadas
Em todos os casos o assunto foi deixado de lado pela mídia, mas a discussão levantada a respeito do racismo e da apropriação cultural ainda ecoa nos veículos midiáticos e nas páginas militantes do Facebook e de outras redes sociais. No entanto, apenas um lado da moeda é vomitado e por isso se torna difícil perceber aonde a mídia quer chegar. Se por um lado são divulgadas discussões sobre o suposto branqueamento em uma ilustração e pouca aparição de atores negros em um filme sobre deuses do Antigo Egito, pouco se discute, se é que se discute, a postura do cantor de rap Eminem, uma vez que o rap é originário da cultura negra em resistência a opressão. Ou ainda sobre a novela e o filme, Os 10 mandamentos, onde também estrelaram atores brancos em papeis principais. Ou até mesmo, sobre o racismo sutil da Rede Globo no carnaval, com a exibição da Globeleza. Ao que parece, o que encontra graça no gosto social, torna-se permitido, lindo. Mas caso contrário, é motivo de falácia, de brigas e revoltas.
A apropriação cultural é, na grande maioria das vezes, ligada ao racismo e em muitas outras vezes o termo é disseminado como algo capaz de causar um etnocídio, mas é perceptível a falta de esclarecimento sobre essas discussões promovidas pela mídia. É preciso entender do que se trata. Nem toda adoção cultural necessariamente significa o abandono ou a desvalorização de determinada cultura considerada originária, isso porque a cultura se reinventa e apesar de tomar novos significados, não anula os antigos.
Ao contrário do que pensam, a cultura não é estática e graças a globalização, as linhas que separavam as nações estão se tornando cada vez mais ínfimas, o que torna todos um único povo, ligados e formados por várias culturas que ao longo do tempo foram sendo repassadas e reconfiguradas. A história de um povo é extremamente significativa, pois trata-se da sua identidade, e por isso faz-se necessário entender que ela não se perde quando contada por outros povos, seja qual for a raça ou a língua. A hibridização cultural torna possível a perpetuação da história, da luta, da resistência, do povo. Compreender os vários caminhos proporcionados pela hibridização, é eternizar a raça humana em diversas épocas e legados.