“Boom” do fundamentalismo
- 26 de abril de 2017
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- Thamires Mattos
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O lugar a que iremos chegar como sociedade com o crescimento de frentes fundamentalistas ainda é incerto. Mas o fato inegável é que elas estão em continuo avanço. Diferente do imaginado por muitas pessoas, o fundamentalismo não tem relação com o terrorismo.
Thais Alencar e Ana Flávia Silva
O dia 11 de setembro de 2001 tinha tudo para ser um dia normal. No entanto, todos os olhares do mundo se voltaram perplexos para os Estados Unidos frente aos ataques terroristas realizados pela rede Al-Quaeda. Estamos há quase 16 anos do ocorrido. Esta data não se tornou um marco apenas pela tragédia e pelos mortos.
Desde aquele dia, a maior potência do mundo nunca mais descansou. Os sistemas de imigração e segurança ficaram muito mais rigorosos. Os piores pesadelos do povo americano com o terrorismo se tornaram realidade e este tipo de ação violenta deixou de ser algo isolado. Mas, as mudanças não pararam por aí. Os grupos religiosos mulçumanos começaram a ser considerados terroristas e fundamentalistas religiosos.
Para entender o significado deste ocorrido é importante compreender o fundamentalismo. Segundo o dicionário, este conceito refere-se a uma “doutrina que defende a fidelidade absoluta à interpretação literal do texto sagrado” ou ainda “atitude de intransigência ou rigidez na obediência a determinados princípios ou regras”. Este termo surgiu após a primeira guerra mundial e foi cunhado por um pastor americano batista chamado Curtis Lee Laws. Ele estava envolvido em um movimento protestante americano que era contra as correntes liberais em ascensão na época.
No entanto, a palavra acabou migrando, principalmente para a imprensa, a fim de designar ações violentas de pessoas preocupadas em defender os fundamentos de suas religiões. Vale lembrar, portanto,a conotação negativa e rígida na qual esta palavra é comumente utilizada com relação a não aceitação dos paradigmas modernos. É por esta razão que este conceito pode também ser aplicado a outras áreas como a política e economia como veremos mais adiante.
Diferente do imaginado por muitas pessoas, o fundamentalismo, de acordo com a colocação do doutor em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), Cristiano Boudart, não tem relação com o terrorismo. “O problema é que algumas vezes os grupos fundamentalistas buscam a conservação de seus princípios a qualquer custo. Inclusive acima da própria vida ou vida de outros”, explica.
A estudante egípcia Ramage Maher está acostumada com a convivência (às vezes tumultuada, é verdade) entre islâmicos e cristãos. Segundo ela, a visão de islâmicos como terroristas é, em grande parte, construída e perpassada pela mídia. “Não são todos os mulçumanos que são terroristas, só os que aparecem na TV”, afirma. Mas, ainda segundo a egípcia, uma coisa é verdade: os mulçumanos levam a sua religião muito a sério e justificam suas atitudes como uma forma de garantir a salvação.
Ramage enfatiza a qualidade apresentada por mulçumanos: profundo respeito pela religião alheia, geralmente aprendido em casa. Em contrapartida, outras famílias ensinam seus filhos a não se relacionar com cristãos ou mulçumanos. “Já tive amigos que deixaram de ir a passeios por causa da presença de cristãos ou mulçumanos no ônibus”, conta. Outro ponto de destaque, segundo a estudante (que atualmente vive no Brasil para fazer uma graduação unviersitária) é o fato de muitas vezes os cristãos serem mais intolerantes do que os próprios mulçumanos, embora estes sejam, com frequência, taxados de extremistas. “Quando estava no Egito, sofri mais com os cristãos”, diz. A egípcia relembra, por exemplo, a reação de uma professora de religião ao ouvi-la afirmar ser guardadora do sábado e não comer carne de porco. “Quando ela terminou de ouvir disse: ‘ Quem guarda o sábado é judeu e não pode ter judeu na minha sala’. Depois disso me expulsou da aula dela o resto do ano”, relembra.
A partir desta experiência, Ramage entendeu que o respeito e a tolerância religiosa não estão relacionados a uma denominação, mas sim a educação adquirida dentro de casa. Partindo daí, pode-se afirmar ser esta uma postura aprendida. Segundo Bodart, o fundamentalismo só é ruim quando relacionado com a violência, pois, “ele carrega em sua essência uma valorização dos fundamentos da crença”, destaca.
Por outro lado, esta prática quando associada à violência pode ser muito perigosa e como destaca Bodart, isso acontece porque “a crença geralmente é um elemento que se valoriza muito”, justifica. No caso dos Jihad Islâmicos, por exemplo, o perigo é a importância da religião em detrimento da política e da própria vida. Além disso, a promessa é de uma vida além desta e muito melhor. Outro ponto relevante destacado pelo sociólogo, é o fato dos valores religiosos ditarem os políticos e não o contrário. Diante estes fatos, como o fundamentalismo se manifesta na política e qual a influência ele pode exercer na sociedade?
Desculpem-nos, mas impossível não falar de Trump
Há diversos exemplos de como o extremismo pode se manifestar quando o tema é política. O mais recente, no entanto, surpreendeu o mundo. Enquanto todas as pesquisas de intenção de voto e a mídia nacional e internacional apostavam na vitória de Hillary Clinton, o povo americano escolheu o empresário Donald Trump. Mesmo após uma campanha repleta de escândalos e discursos conservadores ao extremo que desvalorizavam o papel da mulher, dos estrangeiros e dos negros na sociedade, o povo americano o escolheu como seu novo presidente.
A jornalista Juliana Costa, brasileira e residente nos EUA, descreve a surpresa do povo com o resultado das eleições norte americanas. Segundo ela, quase ninguém esperava a vitória do republicano. “Muitos jornalistas deixavam bem claro que Donald Trump não poderia ocupar a cadeira da presidência, pois agia de forma absurdamente sem ética e respeito com colegas e demais candidatos”, acrescenta.
Coordenador político do Senado, Márcio Coimbra salienta que ao apoiar abertamente a candidatura de Hillary, a mídia automaticamente obrigou Trump a se defender. Coimbra acredita que esta postura mediática motivou algumas pessoas a irem às urnas votarem. “Na verdade a mídia acabou criando um movimento de reação e esse movimento de reação acabou fortalecendo a candidatura de Trump no final”, destaca.
A vitória de Trump, por mais surpreendente que tenha sido, pode ser explicada por algumas peculiaridades do sistema eleitoral dos Estados Unidos. A primeira coisa digna de destaque é a questão da não obrigatoriedade do voto. Assim sendo,por mais que as pessoas se disponham a responder as pesquisas e declarar sua suposta intenção de voto, nunca é possível afirmar com certeza quem vai votar. Outro ponto diferente do nosso sistema é o fato do voto não ser direto. Cada estado, tendo por base a sua população, possui um número de delegados que o representará no colégio eleitoral. Assim, ainda que nem todos os eleitores de um estado optem por tal candidato, os delegados são obrigados a votar naquele que venceu no estado. Por causa disso, um presidente pode ser eleito ainda que não tenha a maioria dos votos diretos. Este foi o caso de Trump.
Com relação ao contraste entre a pesquisa realizada antes das eleições e o resultado da vitória do republicano, Juliana considera que o medo foi um fator preponderante. “Na verdade, o que fez as pesquisas errarem, foi porque muita gente não tinha coragem de dizer que votaria em Trump, o voto da vergonha”, ironiza. Mesmo diante de tal constatação, a jornalista descreve a reação das pessoas por lá como tensa. “Grande parte da população indignada foi às ruas protestar e demonstrar sua insatisfação com o resultado”, conta.
Quanto às expectativas dos estrangeiros com relação ao futuro em território americano, Juliana diz que tudo é muito incerto, pois não se sabe qual rumo as propostas do presidente vão seguir, apesar das ameaças. “Isso é uma grande incógnita”,reflete.
Nasce, cresce e, possivelmente, não morre
Não só de Trump viverá a sociedade! Outras ascensões de frentes fundamentalistas também têm levantado discussão ao redor do mundo. Como não falar da saída do Reino Unido da União Europeia, do fortalecimento de frentes de esquerda como o caso da Venezuela e do firme posicionamento da Coréia. Além disso, impossível não se lembrar do fenômeno Bolsomito com suas afirmações polêmicas causando uma verdadeira ebulição na mídia brasileira, ou as recentes confusões em torno das eleições francesas. E basta um flashback para lembrar do apoio dado as ideias nazistas de Hitler, ao ditador Josef Stalin e aos infindáveis grupos terroristas.Muitos destes casos serão devidamente tratados nessa edição do Canal da Imprensa. Todavia, o que fica no ar são os “13 reasons why” do crescimento de políticos com ideias mais conservadoras.
Bodart destaca que no caso de sociedades onde a vida social e religiosa se funde, como no islamismo, o enrijecimento de ideias fundamentalistas justifica-se pela necessidade em defender e manter suas raízes, principalmente com a presença de costumes ocidentais. Por outro lado, no caso de regimes democráticos, como o Brasil, Bodart acredita que ocorra uma confusão de conceitos e ideias. Para o sociólogo, as bases conservadoras do país levam as pessoas a apoiarem argumentos defensores das tradições, e a confusão se instaura quando o povo acredita que as propostas conservadoras são todas oriundas de frentes religiosas. “Por exemplo, a defesa da pena de morte por parte de alguns políticos muitas vezes é confundida como sendo escolhas influenciadas pela religiosidade, quando não o são (ao menos não em suas bases)”, exemplifica.
Os líderes fundamentalistas geralmente surgem do povo, este os levam ao poder e o sustentam. Entretanto, na sociedade democrática um evento curioso vem acontecendo: pautas embasadas no fundamentalismo religioso têm ganhado o cenário. Além disso, observa-se a solidificação de discursos de intolerância. Bodart destaca que esse crescimento tem ganhado adesão devido aos crescentes problemas sociais “não solucionáveis”. “Em síntese, quanto mais ameaçada a vida e sua qualidade, mais facilmente abriremos mão de nossa liberdade. Dito de outra forma, o contexto social ‘cria’ grupos intolerantes e, consequentemente, com representantes igualmente intolerantes”, complementa.
Retornando mais uma vez ao Trump, o fato dele difundir um discurso coerente com as ideias conservadoras das pessoas que vivem no interior dos EUA provavelmente tenha sido o ponto determinante de sua vitória. É o que acredita Márcio Coimbra. Ele cita ainda candidatos como Rommey em 2012 e McCain em 2008. Governantes que não obtiveram sucesso na defesa dos interesses dessa maioria que não se viram representados pela minoria. “Quando Trump apareceu, naturalmente foi o nome que eles abraçaram e, mesmo com o esforço da mídia pra eleger Hillary, ele foi escolhido. Trump representa realmente os elementos conservadores e é isso que esse eleitorado enxergou”, pondera.
Coimbra acrescenta que a mídia pode ser diretamente prejudicada pelo crescimento fundamentalista, tendo em vista que estas buscam neutralizar todo foco que pense diferente e fale contra o governo dominante. A liberdade da Imprensa pode estar ameaçada por estes grupos desfavoráveis a qualquer tipo de liberdade de expressão. “O líder extremista não tem um apreço pela liberdade, muito menos pela liberdade de imprensa ou opinião”, afirma.
O lugar a que iremos chegar com o crescimento fundamentalista ainda é incerto. Mas o fato inegável é que estas frentes estão em continuo avanço. Os porquês deste boom, bem como as possíveis consequências estão em discussão nesta edição do Canal da Imprensa. Aperte os cintos, esvazie-se de seus preconceitos e reflita.