Do que as mulheres são capazes?
- 21 de março de 2017
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- Thamires Mattos
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Cult, na escolha de mulheres para personificar as vozes e interesses do próprio gênero, contribui para uma sociedade mais igual. Uma sociedade que entenda, de uma vez por todas, que não é preciso limitar uma mulher baseando-se em uma orientação cultural machista, restritiva e agressora.
Thais Alencar
Embora o feminismo não seja o enfoque principal da revista Cult – publicação mensal voltada à cultura – com certa frequência, aborda-se assuntos voltados aos direitos da mulher. A forma como foram conquistados ao longo do tempo e quais as estratégias utilizadas por mulheres que continuam buscando seu espaço na sociedade, são exemplos do que a revista procurar tratar. Falar principalmente deste espaço a ser conquistado em uma sociedade que, por mais evoluída que possa parecer, ainda não sabe lidar com a ideia de que uma mulher pode ser tão boa quanto o homem em atividades antes, reconhecidamente masculinas.
Com o objetivo de basear a análise, fez-se uma pesquisa para encontrar o que a revista já havia falado sobre o tema contemplado nesta edição do Canal. Foram selecionadas duas entrevistas com grandes filósofas no Brasil, Márcia Tiburi e Marilena Chauí. Mulheres envolvidas diretamente na causa de dar a outras o espaço que lhes é devido na sociedade. Além disso, foi escolhido também um dossiê, sessão da publicação voltada à discussão de determinado tema, voltado para a questão da mulher. A sessão conta com cinco ou mais textos diferentes que procuram abordar o assunto sob vários aspectos. O dossiê escolhido é divido em áreas do conhecimento; e um especial publicado em setembro de 2016 sobre as Dicções femininas na cultura brasileira. A entrevista de Marilena e o dossiê datam de março de 2009, enquanto a entrevista de Márcia, de março de 2015.
É interessante notar alguns detalhes que mostram a preocupação da publicação em conscientizar os seus leitores a respeito da relevância da mulher, ainda que talvez, indiretamente. O primeiro ponto é que, quase que em sua totalidade, quem assina os textos de dossiê e as entrevistas voltadas a temas a respeito do empoderamento feminino, são mulheres. Com isso, não estamos querendo dizer, e uma das fontes utilizadas pelo veículo corrobora isso, que apenas mulheres podem fazer parte de movimentos que lutam pela liberdade da mulher e por igualdade entre os gêneros nas mais diversas áreas. É perfeitamente possível que um homem adote uma postura de defesa aos direitos de igualdade da mulher e o faça com a maior competência e credibilidade. O que queremos dizer é que, ao escolher mulheres para discutir sobre um tema tão abrangente como o feminismo, já é uma forma de se mostrar a capacidade da mulher de explorar temas de complexidade. Geralmente a categoria da “complexidade” costuma (indiretamente) ser classificada como “não pertencente” ao público feminino. A exemplo temos temas como política, filosofia, sociologia, etc.
Outro ponto que chama a atenção é a credibilidade e a profundidade com que os assuntos são tratados. O feminismo é abordado com muito equilíbrio. A revista consegue manter esta característica apesar de escolher figuras importantes para o movimento e, portanto, apaixonadas pela causa. A filósofa Márcia Tiburi é um exemplo disso. Em entrevista concedida à Cult ela faz uma relação entre o feminismo e a política. Márcia chama a atenção para a deficiência de nossa educação que gera uma ignorância coletiva sobre temas como os abordados na entrevista. Segundo ela, os ignorantes podem ser chamados assim pois, “não passaram por uma escola que, além de não ter providenciado uma educação sobre gênero e para a sexualidade, não providenciou uma educação para a política”. Ela continua dizendo que a nossa escola não providencia educação sobre temas sociológicos, filosóficos e éticos.
É importante notar, diante disso, como a educação é um ponto chave para a formação de um indivíduo completo, isso é, capaz de respeitar a diversidade e os diferentes pontos de vista que envolvem qualquer assunto. Quando o indivíduo tem acesso a uma educação unilateralizada sobre qualquer tema, não se torna um crítico, mas, sim, um repetidor de discursos. Segundo Márcia, as pessoas repetem discursos porque seres humanos imitam uns aos outros. A imitação faz parte da sociabilização.
Isso nos leva ao outro ponto colocado pela autora. Para ela, “uma possível revolução no Brasil deveria começar com a tomada do poder da televisão”. Ela afirma isso complementando que a televisão se tornou para o brasileiro uma prótese do conhecimento. As pessoas confiam neste veículo de comunicação em gradações diferentes de ingenuidade. Por isso, elas acabam reproduzindo discursos que encontram na televisão, como verdades. Segundo a filósofa, a este veículo seria de grande ajuda às parcelas minoritárias da sociedade se a forma de se fazer televisão mudasse. “Sou a favor de fazer uma televisão com ética, uma ética voltada à educação das pessoas. Uma televisão com democracia”, completa. Enquanto o poder dominante não mudar, não haverá revolução, pois, este poder reprime o que ela chama de exuberância criativa que, segundo ela, é o que nos salva.
É este o tom adotado pela Cult a respeito do feminismo. Crítico e ao mesmo tempo educativo. Além desta entrevista, a revista publicou recentemente uma coletânea de textos na qual se mostra como o posicionamento da mulher na sociedade começou a ser repensado a partir do iluminismo. O desejo da mulher de se tornar mais que uma fiel serva do homem em diversos aspectos, trouxe mudanças para várias ciências, inclusive a psicanálise e a teologia. A medida que essas mulheres foram se levantando, passaram a identificar traços nos discursos dessas ciências que as incomodavam. A discussão aberta foi trazendo o crescimento, mas ainda há um longo caminho de evolução na discussão do tema.
Marilena Chauí, outra personalidade que teve grande influência no estabelecimento do ensino de filosofia nas universidades brasileiras, foi responsável por denunciar muito do machismo existente no meio acadêmico nas décadas de 70 e 80. Quando questionada sobre a permanência do machismo no contexto filosófico brasileiro ela responde: “o indiscreto charme do machismo permanece, embora haja presença feminina considerável na docência e na pesquisa de filosofia”.
Não resta dúvidas que é em resultado à competência e garra dessas mulheres, que a sociedade abre espaço. O especial Dicções femininas na cultura brasileira, trata de mulheres de garra e personalidade que, com muita luta continuam driblando o preconceito e o machismo a fim de conseguir o seu “lugar ao sol”. Nilma Lino Gomes, uma das perfiladas do especial exemplifica bem essa realidade. Podemos dizer que a luta dela é dupla, pois, além de mulher, é negra. Ela foi a primeira e a última ministra das mulheres, da igualdade racial e dos direitos humanos. Sua pasta foi uma das que deixou de existir quando o atual presidente Michel Temer decretou o fim de alguns ministérios visando o corte de gastos.
Enquanto esteve em atividade junto ao governo, Nilma lutou para garantir o direito das mulheres e dos negros nas grandes e “pequenas” coisas. Pequenas como a falta de uma nota explicativa em uma das obras de Monteiro Lobato a respeito da razão por trás dos maus tratos com os negros. “Só queria mostrar como o direito dos negros evoluiu”, justificou.
Cult, ao escolher mulheres para personificar as vozes dos interesses do próprio gênero e por meio de uma cuidadosa seleção de fontes, já contribui para uma sociedade mais igual. Uma sociedade que entenda, de uma vez por todas, que não é preciso limitar uma mulher a determinados papéis baseando-se em uma orientação cultural machista e restritiva de gêneros. Está mais que claro que uma mulher pode muito mais, simplesmente por decidir querer mais.