“Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força”
- 22 de setembro de 2015
- comments
- Thamires Mattos
- Posted in Análises
- 1
Sudaleif Alves
“Era um dia frio e luminoso de abril, e os relógios davam 13 horas.” Assim, George Orwell começa o livro “1984“, um dos romances mais famosos da literatura do século 20. Um clássico que permanece eternamente jovem. No livro, o britânico explora de forma ficcional o totalitarismo em um mundo distópico. Lançado em 1949, só o título (que alude a uma realidade futurística) já intriga e desencadeia uma série de suposições.
A trama toma forma na fictícia Oceania, uma óbvia alusão à Londres, e tem como protagonista Winston Smith, um funcionário do Ministério da Verdade. Por ser obrigado a trabalhar falsificando registros e notícias para reescrever o passado de forma conveniente ao Partido, ele vive sob imensa pressão psicológica. O departamento diz-se da Verdade, mas seu trabalho é uma clara oposição à nomenclatura, visto que o real objetivo é mentir e falsificar. Na obra, as contradições entre as funções declaradas e objetivos reais se estende por todos os orgão do sistema vigente. É o caso, por exemplo, da Polícia das Ideias. O departamento configura uma patrulha do pensamento, capaz de reprimir até mesmo relações amorosas que não se destinem à procriação.
Acima dos departamentos citados, está apenas Big Brother (Grande Irmão), líder máximo que assumiu o poder depois de uma guerra global. Ninguém nunca o viu em pessoa. É desta forma que o autor apresenta um dos profundos conceitos explorados na obra: o tirano mais amedrontador é também o mais abstrato. Em síntese, a tirania se sustenta em linhas invisíveis, geralmente (e quase totalmente) criadas pelo próprio imaginário popular.
Outro conceito interessante, facilmente aplicável hoje à realidade contemporânea, é apresentado por Orwell no slogan difundido em Oceania pelo Estado: “Guerra é Paz, Liberdade é Escravidão, Ignorância é força”. O conceito do poder do discurso. O poder que as palavras encerram em si. Conceito que se liga também a Nova Fala, linguagem criada por Orwell e que é utilizada pelos personagens de sua obra. Os regimes totalitários se preocupam, em grande medida, com a questão da linguagem. Calar a voz da oposição não é suficiente para manter um grupo dominado. É preciso que a lingua se submeta a torções que lhe invertam o sentido.
Big Brother e sua propaganda política incutiam na cabeça das pessoas, por exemplo, que sem guerra a paz não existiria. Visto que a paz é um processo que advém de um combate à violência, como resultado para uma situação de conflito. Se não há conflito, portanto, não haveria paz. Impedindo a população de distinguir entre os dois conceitos. A indústria da guerra se faz naecessária para que haja o discurso da paz, portanto, é requerido um estado permanente de conflito.
Nova Lingua tem este objetivo. Inverter o significado das palavras, atribuir-lhes sentidos limitados, exterminar sentidos que possam sugerir (ainda que levemente) idéia de oposição ao sistema. Sem palavras como amor, liberdade ou revolução no vocabulário do povo, os sentidos que tais termos encerram seriam para sempre eliminados da consciência popular. Portanto, sem palavras para descrever a ideia, tais ideias não existiram mais. Maneiras de controle do pensamentos com fins de retringir a capacidade argumentativa e de raciocínio. O discurso tem o poder de distorcer e reconstruír realidade e é capaz de perpetuar o status quo e a força da dominação. Em “1984“ Orwell afirma que manipular a linguagem (da maneira descrita) é aprisionar o intelecto, tornar impossíveis todos as outras formas de pensamento e reconstruir o indivíduo (seu senso crítico, percepção e expectativas) a partir de seu interior e sem que ele se aperceba disto.
No história de Orwell existem também as “teletelas” (televisões em todos os lugares, públicos ou privados, que ao mesmo tempo que transmitem comunicados do Partido, espionam e vigiam os cidadãos). A ideia de televisão já foi uma escolha avançada para a obra, visto que quando o livro foi escrito, cinema, radio e imprensa (impressa) eram as tecnologias representativas. A televisão surgem apenas na déada de 1950. As “teletelas” de Orwell, levantam pontos importantes na pós-modernidade. A questão da privacidade, por exemplo. Seja pelo ângulo das invasões feitas pelo governos nas vidas públicas e pessoais, ou naquelas autorizadas por meio de redes sociais. O caso Edward Snowden exemplifica bem a situação. O ex-administrador da CIA anunciou em 2013 detalhes da vigilância mundial feita pelo governo americano. Na mesma semana, a venda do livro “1984“ subiu em 7000% no site da Amazon.
Há outros exemplos mais explicitos. No mês passado as mídias divulgaram a declaração Joseph Cannataci, relator especial da ONU para Assuntos de Privacidade, sobre questões de vigilância. Cannataci chamou a atual supervisão de vigilância do Reino Unido de “piada de mau gosto” e comparou a situação à descrita por Orwell. Em “1984“, o protagonista Winston vai na surdina para afastados campos a fim de ficar a sós com seu interesse romantico, Julia. Segundo Cannataci nem isto se pode fazer hoje. Visto que nem no campo, debaixo de árvores, se estaria livre das “teletelas”. Nas palavras do relator, o Reino Unido “é pior do que qualquer coisa que o autor de ‘1984‘, poderia imaginar”.
Porque vigiar? Porquue distorcer discursos? Porque incitar ódio? Porque reescrever a história baseando-se em interesses? Embora lúcido e crítico, em alguns aspectos Orwell pode ser considerado um ingênuo idealista. Em que sociedade viveríamos sem que, de alguma forma, os comportamentos acima (ou pelo menos parte deles) se manifestasse? Controle e manipulação paracem ser a vocação social do mundo. Apesar disto, o autor de “1984“, é apontado também como um visionário. O que são hoje nossos computadores e sistemas de internet, disponibilizando informações sobre os usuários (que correspondem a 80% da população mundial) que não “teletelas”? O que é a indústria bélica e exemplos como a Guerra ao Terror de George Bush que não uma reestruturação do conceito de paz e a construção de figuras dignas de ódio “global”? O que são os meios, as propagandas que não uma Nova Língua reeducanto nossas vontades, necessidades, nossas concepções?
Em entrevista, pós lançamento da obra, Orwell disse: “Eu não acredito que o tipo de sociedade que descrevo necessariamente irá chegar, mas acho que algo semelhante poderia emergir”. Ledo engano. Oceania já é real. Na época de Orwell, o jornal britânico The Sunday Times escreveu uma ácida crítica onde Edward Shanks dizia que a obra “conseguiu quebrar todos os recordes de chatice”. Hoje, a perspicácia, lucidez, engenhosidade e sagacidade de Orwell em “1984“, é largamente reconhecida. De toda forma, é assustador a premonição do autor quanto à possibilidade iminente dessa distopia.