Divergir é transcender?
- 22 de setembro de 2015
- comments
- Thamires Mattos
- Posted in Análises
- 0
Thamires Mattos
A saga Divergente, de Veronica Roth, conta a história de uma adolescente indecisa e diferente. Beatrice Prior (Tris) vive em uma Chicago pós-apocalíptica. Cercada por um muro, acredita que está segura. A sociedade de sua terra natal é dividida em cinco facções, e cada uma delas preza por uma virtude diferente: os Eruditos dão valor à inteligência, os membros da Franqueza à sinceridade, os da Amizade à generosidade e os Audaciosos, à coragem. A facção da família de Tris pertence à Abnegação. O grupo vive de maneira simples e devotando suas vidas ao cuidado das pessoas marginalizadas. Nesta nova Chigaco, aos 16 anos, os adolescentes devem fazer uma escolha: a qual virtude pertencer. Para ajudar os jovens a tomarem suas decisões, um Teste de Aptidão para as facções é aplicado. A insegura Beatrice descobre, então, que é divergente. Ela transcende os conhecimentos de apenas uma casta. O medo a invade, afinal os divergentes são considerados ameaças à estrutura da sociedade e, por isso, são “caçados”. No entanto, Tris decide pertencer à Audácia, deixando sua vida na Abnegação para trás – mas não sua divergência.
A história não deveria nos surpreender. O “cada um no seu quadrado” dos mais diversos sistemas de organização social nos prende a apenas uma perspectiva de vida. “Eu nasci assim, eu cresci assim, vou ser sempre assim”. Nesse ciclo vicioso, não há escapatória: poucos esmagam muitos, que consentem com as brutalidades feitas a eles mesmos. Na série Divergente , o ponto da virada é a voz – fraca e aguda – de dois inconformados. Tris nasceu e escolheu permanecer diferente. Seu parceiro, Tobias, faz outra escolha. Não quer ser apenas “audacioso”, pois acredita que a divergência é um poder. Alguém só pode ser considerado bom se tiver em si um pouco do espírito de cada facção. As cinco virtudes precisam ser cultivadas em uma sociedade que não alimenta nenhuma adequadamente.
Um ambiente não-propício para o crescimento da inteligência, sinceridade, coragem, generosidade e abnegação. Isso soa familiar? Provavelmente sim – e não foi retirado de nenhuma distopia sem pé nem cabeça. Basta olhar para o chão que caminhamos e podemos ver as sombras de uma sociedade medíocre. As palavras proferidas por nossos líderes parecem transparentes como o vidro, mas a única característica deste que carregam verdadeiramente é a capacidade cortante. A coragem a ser louvada é a de amontoar pilhas e pilhas de dinheiro para si. Generosidade? Só é necessária em projetos sociais que acontecem em plena luz do dia, para todo mundo ver. Vale lembrar da postagem nas redes sociais: uma foto com algum mendigo acompanhada de uma legenda tocante é sinal de abnegação no século 21.
Já dizia o ditado popular: “A ignorância é uma bênção”. Ela te mantém seguro enquanto crises existenciais acontecem ao seu lado. E a mídia? Ah, ela fornece passatempos: meias-verdades. A ilusão de que “tudo está bem” é alimentada, e o conhecimento já chega a nós fragmentado. Essa fragmentação seleciona conteúdos que nos mantém conformados. Se alguém insurge da massa trazendo ideias diferentes, é considerado rebelde. Nicolau Copérnico era “louco” por acreditar no heliocentrismo. O povo que foi às ruas para defender a democracia durante a revolução francesa era taxado de “radical”. O movimento feminista era considerado incômodo e não se via a necessidade de condições igualitárias entre os gêneros. No Brasil, quem era favorável às eleições diretas durante a ditadura foi perseguido, até que o movimento ganhou força e suas ideias passaram a integrar o sistema.
Atenção, spoilers a seguir: Esses comportamentos não tão distópicos encontram seu caminho em Divergente. A história é muito semelhante à vivida durante a Segunda Guerra Mundial. O regime nazista de Adolf Hitler canalizou comportamentos antissemitas recorrentes na Europa e os utilizou para criar uma barreira entre o povo ariano (de acordo com Arthur de Gobineu, todos os povos europeus de raça “pura” e branca) e povos não-arianos, com ênfase nos judeus (supostamente “danificados”). Hitler pregava a purificação genética da espécie humana, com o povo ariano no comando devido à sua carga genética “privilegiada”. No livro, a suposta razão para isso é a degradação genética da humanidade. Alguns até buscam “purificar” a espécie, fazendo acepção entre “geneticamente puros” e “geneticamente danificados”.
A partir daí, um novo muro é construído. Não ao redor de uma comunidade, mas entre os indivíduos. Os GPs (“geneticamente puros”) não devem se misturar com os GDs (“geneticamente danificados”) e vice-versa. No último livro da saga, uma guerra entre GPs e GDs é descrita. Os “puros” saem vencedores e instauram uma diferenciação entre eles e os “geneticamente danificados”. Para que esse sistema perdure, informações sobre o genocídio cometido pelos nazistas são ocultadas da sociedade. Tudo é feito em nome do “bem maior”. Todos os altos cargos na sociedade devem ser de GPs, que seriam os únicos intelectualmente capazes de exercer tarefas de liderança. De acordo com os governantes, a perpetuação da humanidade só poderia acontecer se essa distinção existisse.
A inconformação de alguns leva a mudanças drásticas. Chicago, antes tratada como uma colônia de GPs pelo governo, decide não fazer diferenciação entre puros e danificados. Todos devem participar das atividades políticas e sociais e tem oportunidade de se candidatarem a cargos públicos. A cidade se torna um refúgio para GDs do país inteiro, afinal, a revolução toma caráter apenas local e tem sua disseminação barrada pelo governo. Chicago, então, continua com seus muros: as ideias não se espalham. Lá dentro, os cidadãos vivem em uma bolha dentro de um mundo caótico. Ironicamente, tomar as rédeas do próprio destino talvez não seja sinônimo de divergência, e sim de esperanças utópicas que nos levarão a novas distopias.