
60 anos de história no plim plim
- 4 de junho de 2025
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- Theillyson Lima
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A TV Globo completa 60 anos e revela trajetória e desafios enfrentados em sua caminhada na televisão brasileira.
Julia Viana
No dia 26 de abril de 1965, em meio ao fervor contido de uma ditadura recém-instaurada, nascia no Rio de Janeiro uma emissora que parecia destinada à irrelevância. A TV Globo, modesta em ambição e limitada em recursos, estreava num país cujas imagens ainda se formavam em preto e branco, onde a televisão era privilégio e promessa. Nos seus primeiros passos, erráticos e tropeçantes, parecia fadada ao esquecimento. Mas há acontecimentos que se organizam silenciosamente para se tornarem estrutura. Em 1966, a chegada de Walter Clark como diretor geral provocou uma reorganização do caos. Não foi apenas a cobertura da enchente no Rio de Janeiro que revelou um novo pulso narrativo: foi o nascimento de uma consciência midiática que saberia estar no lugar certo, com o olhar certo, na hora exata.
Aos poucos, a Globo foi abandonando sua condição periférica. Ao adquirir os canais de São Paulo e Bauru, começava a criar os contornos de uma rede nacional. Em 1969, ao inaugurar o “Jornal Nacional” como o primeiro telejornal transmitido simultaneamente para todo o território, a emissora selava um pacto de unificação simbólica. Se antes o país se via em pedaços, fragmentado em suas notícias regionais, agora passava a se reconhecer num discurso único, centralizado, orquestrado. Era mais do que um telejornal: era uma cartografia do cotidiano nacional, redesenhada todas as noites por um roteiro cuidadosamente calibrado.
O chamado Padrão Globo de Qualidade, consolidado na década de 1970, tornou-se mais que um selo estético, foi um projeto ideológico. A racionalização da grade, a padronização das narrativas e o investimento técnico colocaram a Globo como parâmetro, mas também como filtro. Quem aparecia na tela ganhava existência pública, quem não aparecia se tornava silêncio. Foi também nesse período que a emissora enfrentou críticas severas por sua proximidade com o regime militar. Embora não tenha sido a única, a Globo foi cobrada como a maior.
Construção da identidade nacional
Nos anos 1980, a Globo alcançou uma onipresença inédita. Mais do que acompanhar o cotidiano do país, passou a defini-lo. Novelas como “Roque Santeiro” (1985) e “Vale Tudo” (1988) marcaram o imaginário nacional e serviram como arenas simbólicas onde se encenavam os grandes dilemas da sociedade brasileira. A emissora tornava-se, ao mesmo tempo, espelho e criadora de realidade, uma instância quase pedagógica do sentir coletivo.
O “Fantástico”, com seu formato de revista eletrônica, tornou-se um fenômeno dominical. Combinando jornalismo, entretenimento e ciência popular, consolidou a lógica de hibridismo que caracteriza a Globo. Ainda que com claros limites editoriais, seu jornalismo era eficaz e abrangente, sendo, por muitos anos, uma das principais fontes de informação para a população brasileira. Ao mesmo tempo, era acusado de práticas como o jornalismo declaratório e a falta de pluralidade ideológica.
O auge também teve seus excessos, a unificação de vozes muitas vezes resultava em apagamentos. As emissoras regionais foram absorvidas ou anuladas, os sotaques foram padronizados. A lógica do centro prevaleceu sobre as margens, e o Brasil que emergia da tela era, muitas vezes, o Brasil que cabia no enquadramento carioca-paulistano.
Essa centralização alimentou a fama de excelência, mas também a crítica de autoritarismo cultural. A emissora era referência, mas também era contestada. E se o país inteiro se curvava ao plim-plim, nem todos o faziam por escolha.
Desafios na era digital
A chegada da internet e das plataformas digitais, a partir dos anos 2000, iniciou um processo de erosão da hegemonia global. O público já não dependia exclusivamente da televisão para se informar ou se entreter. As redes sociais, o YouTube, os serviços de streaming abriram outras portas e criaram outras vozes. O modelo tradicional da TV passou a parecer lento, rígido, datado.
A audiência da TV Globo caiu de forma constante na última década. Segundo dados do Kantar Ibope, o share da emissora na Grande São Paulo, principal mercado publicitário, caiu de 48% em 2005 para cerca de 30% em 2023. Isso não significa irrelevância, mas aponta para uma perda de centralidade. A Globo continua sendo líder, mas num campo mais fragmentado, mais disputado.
O Globoplay, lançado em 2015, foi uma tentativa estratégica de adaptação. Com mais de 30 milhões de usuários cadastrados e um crescente investimento em produções originais, o serviço representa uma transição importante. Mas mesmo nesse novo terreno, a concorrência é feroz: Netflix, Prime Video, Disney+ e outras operadoras disputam o tempo e o bolso do espectador.
A emissora tem buscado interlocução com as novas linguagens e pautas contemporâneas, como diversidade e representatividade. Entretanto, essas tentativas muitas vezes soam como correções tardias. A Globo precisa não apenas se adaptar, mas também demonstrar disposição para ser questionada. O desafio, agora, é conquistar relevância em um cenário em que autoridade se constrói no diálogo e não mais na imposição.
Para se manter relevante, a Globo tem investido em inovação e adaptação às novas tecnologias. A emissora lidera a implementação da TV 3.0 no Brasil, que promete oferecer qualidade 4K, áudio imersivo e maior interatividade . Além disso, o Globoplay tem sido uma aposta para alcançar o público digital e diversificar as fontes de receita.
Entre o passado e o presente
Em abril de 2025, a Globo realizou uma extensa programação especial para marcar seus 60 anos. Foram mais de 60 horas de conteúdo comemorativo, incluindo documentários, entrevistas, reencontros e programas especiais. O ápice foi o espetáculo “Show 60 Anos”, exibido em horário nobre, com apresentações musicais, quadros históricos e homenagens a artistas emblemáticos da casa.
O especial foi um sucesso relativo de audiência, com picos que superaram os 25 pontos no Ibope. Mas sua importância talvez seja mais simbólica do que numérica. Em tempos de fragmentação midiática, reunir uma audiência nacional em torno de um mesmo conteúdo já é, por si, um feito relevante. No entanto, o tom da celebração oscilava entre o tributo e a autoafirmação.
O retorno do “Vídeo Show” em formato especial evidenciou esse gesto de olhar para dentro, de construir uma memória institucional como patrimônio cultural. A Globo celebrou a si mesma, como quem procura reafirmar sua permanência num tempo de incertezas. Foi eficaz na forma, mas limitada no conteúdo crítico.
Ao evitar os episódios controversos de sua história, como a edição polêmica do debate Collor-Lula em 1989, ou a cobertura enviesada de manifestações populares, a emissora perdeu uma oportunidade de se confrontar com seus próprios fantasmas. A celebração foi afetiva, mas pouco autocrítica. Nostálgica, mas rarefeita de perguntas.
O futuro do plim plim
Aos 60 anos, a TV Globo enfrenta o dilema de todas as instituições longevas: como preservar o que importa sem repetir o que cansa. Ainda detentora de grande capital simbólico, a emissora tem o desafio de repensar sua função num ecossistema midiático descentralizado, em que credibilidade se conquista episódio por episódio, narrativa por narrativa.
Seus ativos continuam sólidos: infraestrutura, acervo, elenco, reconhecimento. Mas seus paradigmas precisam de revisão. A aposta em remakes, como o anunciado retorno de “Vale Tudo” para 2025, pode ser um sinal de reconexão com o presente se for capaz de dialogar com as novas tensões éticas e sociais. Reencenar sem atualizar é repetir. Atualizar sem entender é distorcer.
A Globo já não pode ser o centro incontestável da cultura nacional, mas pode ser um dos espaços possíveis para sua reinvenção. Isso exige abertura para outras vozes, outras estéticas, outras formas de produção. O modelo vertical precisa dar lugar à horizontalidade das trocas, à polifonia dos sentidos.